terça-feira, 11 de setembro de 2018

O século das luzes, Alejo Carpentier



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(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2016)

            “Com a Liberdade, chegava ao Novo Mundo a primeira guilhotina”. É este o espírito contraditório do romance O século das luzes (El siglo de las luces) que não poderia ter título mais explícito na medida em que a trama contada por Alejo Carpentier (1904-1980) pertence ao repertório da História e seu personagem principal Victor Hugues, verdadeiramente existiu e cumpriu o papel de levar às Antilhas a guerra em nome da Revolução Francesa e implantar as idéias libertárias no Caribe.
            A história resume-se à aventura de Hugues e três adolescentes a quem ele infunde o ideário libertário e jacobino. Os irmãos Sofia e Carlos, além do primo Esteban, unem seus destinos a Victor Hugues, quando este chega a Cuba para tratar de comércio e encontra os três perdidos no ambiente desordenado de uma casa cujo patriarca, ao morrer, os deixa à deriva da vida e nas mãos inescrupulosas de um testamenteiro.
            Filho de pai francês e mãe russa, Alejo é um homem do mundo, um dos mais eruditos de sua geração (e esta erudição é facilmente percebida em O século das luzes). Musicólogo, com investigações na área da cultura popular, jornalista e ensaísta, Carpentier viveu longos períodos na França (onde conviveu com os surrealistas) e na Venezuela, num exílio curioso: em Caracas, li e escutei relatos sobre a atividade de Alejo Carpentier na área da modernização da publicidade e do rádio venezuelanos (!). O século das luzes foi escrito em Guadalupe, Barbados e Caracas, entre os anos de 1956 e 1958. Logo, antes da Revolução Cubana. Alejo chegou a ser Embaixador de Cuba na França. O século das luzes é publicado em francês, em 1962, meses antes da edição no original espanhol, editada no México com uma data extremamente singular do ponto de vista editorial, porque traz o dia, 24 de novembro, da sua primeira edição.
            Alejo Carpentier, junto com os companheiros de geração como os argentinos Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e seu conterrâneo Lezama Lima, acompanhado dos mais jovens como Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Cortázar e o cubano, mais tarde exilado, Guillermo Cabrera Infante, são os que irão despertar no público europeu admiração estética e a promoção da literatura hispano-americana como nunca antes acontecera.
            A literatura de Alejo Carpentier já foi classificada, ao lado de outros, inclusive o cubano Lezama Lima, de neobarroca. O neobarroco (veja-se o ensaio de outro cubano, Severo Sarduy, que inclui também o nosso Guimarães Rosa na mesma categoria) se caracteriza pela enumeração e proliferação de palavras e coisas. Há uma exuberância na descrição e acúmulos de objetos e imagens. Mas, ao contrário do barroco tradicional, cada palavra tem sua função e nada está fora de lugar ou serve de puro ornamento. Tanto que o leitor não sente nenhum artificialismo e lê como se toda a literatura sempre fora construída de descrições, retorcimentos, distorções e abundância.
            O neobarroco de Alejo está ligado ao seu enciclopedismo (dele, cujo tema é a Revolução Francesa, fruto das idéias dos filósofos enciclopedistas). Não é apenas sua vasta cultura que está expressa no romance. Existe também ânsia de tudo abarcar, não no sentido de criar verossimilhança no romance, mas de provocar no leitor uma visão espraiada e ampla de uma realidade cultural antes que apenas representativa do mundo imediato. Alguns falam em reconstituição de época. Contudo, o que se vê é muito mais uma pretensão provocadora: observa-se um fluxo contínuo de “formação” (do espírito do tempo – Zeitgest –, de uma voz narrativa poderosa que se sobrepõe às vidas dos personagens) antes que meras “informações” para situar o leitor e sustentar a trama. Esta voz narrativa é muito moderna e, embora não se possa falar em “fluxo de consciência”, pois o romance mostra exterioridade e aponta para ações, ocorre aqui um fenômeno interessante: os personagens se subjugam a essa voz que, sem cortes ou mudanças temporais, é a grande “personagem” do romance – é ela que importa, além das venturas e desventuras dos personagens. Por esta razão, O século das luzes não é um romance histórico convencional.
            O século das luzes também é um romance de aprendizagem. A chegada de Victor Hugues à casa havanesa dos adolescentes é como um ritual de iniciação à vida adulta. Os três adolescentes – principalmente Esteban – é levado para aprender o mundo. Não apenas o mundo das idéias, mas o mundo material, humano, das relações sociais. O duro, penoso e às vezes revoltado aprendizado do jovem Esteban, que ao mesmo tempo introjeta a realidade revolucionária e a vê com ceticismo, é por sua vez o aprendizado das Antilhas na nova ordem mundial. Representa alegoricamente o ingresso de um mundo perdido e escravo num espaço de vivas contradições entre o passado e a nova realidade, pensamento avançado e respeito humano aos direitos dos homens livres.
O grande herói dessa história é Esteban, que conclui o périplo de sua aventura intelectual e filosófica por uma França revolucionária e um Caribe destroçado pelas ideologias contrastantes. É Esteban quem oscila entre o humanitarismo e a revolta pelo rumo que toma a Revolução Francesa e mesmo o destino despótico, mercantil e mesquinho de Victor Hugues. Alejo Carpentier viveu outro século das luzes: o século XX, o século da revolução bolchevique. Ele mesmo marxista, fervoroso adepto da Revolução Cubana, não chegou a conhecer o prenúncio da decadência de uma revolução das luzes numa Cuba de Fidel a quem ele serviu com o fervor do jovem Esteban nos primeiros momentos. Não é gratuita a escolha do marxista Alejo em eleger um século revolucionário para situar seu romance digressivo. Em ritmo de epopéia (Esteban, como Ulisses, retorna ao lar), O século das luzes é um romance que, como os iluministas veneravam a Razão, busca entender antes a Idéia (o gosto pelas maiúsculas em Alejo merece comentário mais extenso) e o homem que por ela é regido.

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