quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

ALFREDO BOSI ESCREVE SOBRE LIVRO DE ANTONIO CARLOS SECCHIN



        MEMÓRIAS DE UM LEITOR DE POESIA
                Para os bibliófilos o nome de Antonio Carlos Secchin está associado a um dos  nossos maiores amadores de livros de Literatura Brasileira . As raridades da sua biblioteca particular são pasmosas: vão de originais de um Drummond anteriores à sua estréia como poeta até exemplares únicos de obras de Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto. Ainda bem que temos em nossa língua a paradoxal expressão “santa inveja”; caso contrário, cairíamos todos naquele ignóbil pecado mortal que consiste em “entristecer-se com os bens alheios”, como o definiu com  a sua costumeira precisão Santo Tomás.
      Para sorte dos que amam um livro  não só pelo apuro gráfico  ou pelo  caráter de exemplar raro, mas também pelos seus dons de expressão  e pensamento, Antonio Carlos Secchin é sobretudo um leitor de poesia. Há uma palavra que define exatamente a sua relação com a obra poética: fidelidade. Fiel à dupla dimensão de criador e crítico, Secchin deu-nos  a sua poesia em Todos os ventos (2002), organizou com  notória competência acadêmica edições de poesias completas de Cecília Meireles (2001), João Cabral e Ferreira Gullar (2008), escreveu um dos mais completos estudos de análise e interpretação do criador de Morte e vida severina  ( João Cabral:a poesia do menos, 1986)e reuniu suas páginas críticas em Poesia e desordem (1996) e Escritos sobre poesia & alguma ficção (2003).
  Chegou  também para o nosso animoso leitor crítico  o tempo de lembrar.  Tempo de recolher ensaios compostos em épocas distintas sobre distintos autores, que tem para o seu olhar um encanto e um poder de sedução recorrente. Nessas Memórias de um leitor de poesia, publicadas em coedição pela Academia Brasileira de Letras e pela Topbooks,  lemos textos de cunho teórico e pedagógico  que alternam com exercícios de análise literária.
         O ensaio de abertura dá o título ao livro. Trata-se da edição de uma aula inaugural proferida em 2004  na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro -  belo depoimento em que o mestre  recapitula o seu itinerário de leitor  apaixonado de ficcão e poesia.  Uma lembrança do Antonio Carlos ginasiano é digna de citação, pois remete a uma dessas experiências que acabariam definindo uma vocação:
         “... uma professora de português anunciou que iria apresentar a poesia moderna, e, sem nenhuma preparação, atirou sobre a turma   “No meio do caminho”, de Drummond, evidentemente para obter a gargalhada coletiva. Mas ali, em meio à quase unanimidade do escárnio, percebi um novo ritmo, uma nova tonalidade, bem diferente da velha melodia que predominava nas antologias ginasianas. A partir de uma cena montada para ridicularizar a poesia moderna frente aos jovens e parnasianos ouvidos da turma, fui atraído  pela beleza estranha daquele discurso, seduzido pela força da poesia, no início de uma viagem sem fim”. 
         À memória segue-se uma reflexão de notável alcance crítico: “Quando hoje me dizem que não há saída para a poesia, respondo que a poesia só tem entrada, e nos convida a caminhos que jamais supúnhamos existir”.  São esses caminhos longamente palmilhados pelo professor Antonio Carlos Secchin que o levaram a fazer o inventário dos métodos de análise de texto, cerne desta alocução universitária. .  Da rememoração dos anos de aluno de Letras nos anos 70 ficou uma apreciação lúcida do estruturalismo, que ele enfrentou com espírito crítico, diferentemente dos epígonos em geral surdos ao verdadeiro encanto da linguagem da lírica,  que é musical e emotiva e, ao mesmo tempo, profundamente enraizada na História.  Secchin, embora sempre sensível às características formais do poema, jamais descurou dos trabalhos da interpretação, que remetem a forças subjetivas e a contextos sociais e culturais. Recomendo a todos os professores de Literatura que leiam com atenção essas páginas ricas de pistas para orientar os estudantes de Letras tantas vezes perdidos em especulações estéreis que inibem a relação  existencial  do leitor com o texto poético.
         As Memórias de um leitor de poesia não se limitam ao discurso entre crítico e pedagógico. Depois desse verdadeiro preâmbulo, abre-se um leque de análises de cunho estético e lato sensu cultural. Aqui é patente o embaraço da escolha. Atente-se para a riqueza de dados e observações que o autor prodigaliza quando se abeira do Romantismo brasileiro, colhendo frutos novos em solo já largamente arado pela nossa historiografia literária.  Merece relevo, pela originalidade do tema escolhido,  o ensaio  Pátria, Portugal, Poesia, em que Secchin explora a ambiguidade dos poetas românticos brasileiros em face do legado de Portugal.   Não conheço nenhum estudo de caráter comparativo que haja penetrado, como este, nos labirintos de nossa relação afetiva e literária com  a imagem de Portugal,  que ora aparece aureolada  mãe-pátria, ora se vê rejeitada como madrasta,  matriz da opressão colonizadora.   Doravante os  Estudos Culturais deverão contar com esse exemplo de pesquisa histórica e ideológica,   que mantém o necessário equilíbrio no ajuizamento das fontes.
      Ainda na esfera do Romantismo brasileiro o ensaísta se debruça sobre a figura singular de Fagundes Varela, poeta que conseguiu o tento raro de ser ao mesmo tempo original e epigônico. Original pelo frescor do verso, aqui e ali cadenciado em módulos populares; epigônico por força  da malha cronológica, pois, escrevendo nos anos 60, sucedeu aos poetas da segunda geração  herdando-lhes os principais  temas e motivos.   No entanto, prefaciando a sua excelente antologia do poeta, Secchin retificou a fortuna crítica de Varela que insistia no teor repetitivo da sua obra. Agora, em vez do romântico tardio, temos  um Varela, poeta de oito faces, ensaio  que me é particularmente caro, pois tenho sido, desde a adolescência, um comovido leitor do “Cântico do Calvário”, essa obra-prima do lirismo em nossa língua. E nunca me saiu da memória este verso que Antonio Carlos cita entre tantos que colocou sob a rubrica do motivo “Quem sou”: Quem de si mesmo desterrar-se pode?    O ensaísta desdobra para instrução e encanto do leitor um Varela cívico e abolicionista, um Varela ensimesmado à procura de uma fugidia identidade, um Varela amante da natureza tropical e fino paisagista, um Varela sentimentalmente cristão, um Varela amante da beleza feminina, um Varela  que pensa a grandeza e os limites da própria poesia; enfim, um Varela capaz de perguntar-se sobre o enigma da morte e do além.
         A fidelidade à poesia em Secchin também é responsável pela sua capacidade de voltar-se   não só para  valores consagrados da nossa modernidade literária, Cecília Meireles, Drummond, João Cabral, mas também para temas ingratos como a presença do Parnaso e a obra esquecida de um Mário Pederneiras.  Para aqueles, numes da poesia do século XX,  o crítico dedica  autênticos exercícios de análise estilística em que encontramos não poucos achados críticos.  Para os últimos, aos quais  a virulência  da polêmica modernista não terá feito porventura a devida justiça, o ensaísta reserva páginas de ponderada  historiografia literária: um discurso que pesa cuidadosamente o que  pereceu e o que resistiu à usura do tempo.
         “A glória é o sol dos mortos”. A frase lapidar é de Victor Hugo. Vale para todas as rememorações que se fazem para trazer de novo à luz, ainda que efemeramente, a imagem e a palavra dos que nos precederam no amor às letras e que tem o direito de esperar pelo nosso reconhecimento. O discurso com que Antonio Carlos Secchin tomou posse  na Academia Brasileira de Letras, aos 5 de agosto de 2004, é exemplo desse preito solene à memória dos  confrades que o antecederam : o fundador da Cadeira n. 19, Alcindo Guanabara, e os sucessores, D. Silvério Gomes Pimenta, Gustavo Barroso, Antônio da Silva Melo, Américo Jacobina Lacombe e Marcos Almir Madeira.
Ciente de que,valorosos no cumprimento de suas respectivas vocações de homens públicos e estudiosos do Brasil,  nenhum deles fez da Literatura o seu ofício principal, o novo acadêmico traçou com galhardia o perfil de cada um, realçando o empenho  com que souberam, como na parábola evangélica, multiplicar os seus talentos.  De todo modo, é sempre o poeta e leitor de poesia que fala.  Por isso, abre a sua alocução  com estes belíssimos versos de Cecília Meireles: Como os poetas que já cantaram,/ e que ninguém mais escuta,/eu sou também a sombra vaga/de alguma interminável música.  Somos todos elos de uma melodia em aberto, daí a expressão perfeita da interminável música, que dá o título ao texto. E, porque intérmina, essa cadeia também cabe ao poeta imaginá-la , e esse poeta é Carlos Drummond de Andrade, com que antes se entreabre do que se cerra o discurso  de Antonio Carlos Secchin:
      Ó vida futura! nós te criaremos.
        
           Alfredo Bosi  

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