quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A voz de um poeta afegão

Poeta afegão dá forma ao metal e a palavras duras
 


Azam Ahmed
Em Khost, no Afeganistão
  • Christoph Bangert/The New York Times
    Matiullah Turab, um dos mais famosos poetas pashtuns do Afeganistão, na garagem onde ganha a vida consertando os coloridos caminhões de caravana paquistanesesMatiullah Turab, um dos mais famosos poetas pashtuns do Afeganistão, na garagem onde ganha a vida consertando os coloridos caminhões de caravana paquistaneses
O poeta passou uma tira de metal pelos cortadores de aço antigos, gerando triângulos brilhantes que caíam com um ruído monótono no chão da oficina.
Ao fundo, o ruído dos trabalhadores enchia o pátio: uma plaina trabalhando sobre uma longa viga, um gerador zumbindo; o gemido de um caminhão gigante a diesel em marcha lenta.
A música da dura jornada de trabalho brotava em torno de Matiullah Turab, um dos mais famosos poetas pashtuns do Afeganistão, na garagem onde ganha a vida consertando os coloridos caminhões de caravana paquistaneses, que transportam mantimentos para o campo.
A cadência de suas noites, no entanto, é própria: formatando uma poesia tão dura e penetrante quanto as ferramentas que usa durante o dia. A natureza e o romance não lhe despertam o menor interesse.
"O trabalho de um poeta não é escrever sobre o amor", rosnou, com sua voz potente misturando-se ao ruído da oficina. "O trabalho de um poeta não é escrever sobre flores. Um poeta deve escrever sobre o sofrimento e a dor das pessoas".
Com suas palavras resolutas, Turab, 44, oferece uma voz para os afegãos que se tornaram cínicos em relação à guerra e seus perpetradores: os norte-americanos, o Talibã, o governo afegão, o Paquistão.
A guerra se transformou em um comércio
Cabeças foram vendidas
Como se tivessem o peso do algodão,
Na balança estão os juízes
que experimentam o sangue, e então decidem o preço


Versões gravadas dos poemas de Turab se espalham de forma viral, especialmente entre os pashtuns, os quais ele defende descaradamente -- em uma afinidade tribal que aliena alguns tadjiques e hazaras. Sua estreita ligação com Hezb-i-Islami --meio partido político islâmico, meio grupo militante-- afasta outros.

Apesar de suas afiliações estreitas e sectaristas, sua poesia tem apelo popular. Turab reserva sua caridade para os afegãos comuns, abatidos pela corrupção e o desapontamento que vieram a definir a última década de suas vidas.
Muitos veem seus poemas como uma forma de combater a versão dos fatos diariamente propagada pelo governo, diplomatas, líderes religiosos e a mídia. Alguns dos poemas foram traduzidos do pashtum para o inglês pelo "The New York Times".

Vocês, porta-bandeiras do mundo,
Que nos fizeram sofrer em nome da segurança
Gritam por paz e segurança,
e despacham armas e munições


Sentado em um banco improvisado, com o chapéu de lã pakol ligeiramente inclinado e roupas manchadas de graxa, Turab olhou para a noite para além de sua oficina de concreto, uma paisagem de panos, arames e lixo. O calor miserável era quebrado de forma intermitente por um ventilador de pé ligado a uma bateria de carro. Um vendedor vizinho martelava uma pedra de gelo, cortando pedaços para vender aos motoristas que passavam por ali.
"Não há nenhum político genuíno no Afeganistão", disse ele, abrindo um breve e raro sorriso. "Até onde eu sei, os políticos precisam do apoio do povo, e nenhum desses políticos têm isso. Para mim, eles são como acionistas de uma empresa: só pensam em si mesmos e em seus lucros".
Ele continuou: "O Talibã tampouco é a solução. Já se foram os tempos quando a maneira de o Talibã governar funcionava".
Ele não tem paciência para preciosismos em seu próprio trabalho ou no de outros. Ele é particularmente impiedoso com membros do governo. Ele os ridiculariza, dizendo que deveriam costurar três bolsos em seus casacos: um para coletar a moeda afegã, outro para coletar dólares norte-americanos e um terceiro para as rúpias paquistanesas.
Apesar de todo seu desprezo, no entanto, Turab continua popular em círculos influentes do governo, e o presidente Hamid Karzai convidou-o recentemente para o palácio presidencial em Cabul.
"O presidente gostou da minha poesia e disse que eu tinha uma excelente voz, mas eu não sei por que", disse ele. "Eu o critiquei".

Na verdade, ele é bastante requisitado. Embora ele prefira estar em casa em Khost, a agenda de viagens de Turab supera muito a dos outros ferreiros. As pessoas se reúnem para ouvir suas raras leituras pessoais e, quando novos poemas são postados no YouTube, rapidamente ficam entre os mais assistidos pelos afegãos.
Ele está planejando uma viagem a Moscou em breve para receber um prêmio de membros da diáspora afegã. E ocasionalmente ele se apresenta para o governador de Paktia, um amigo.
Turab é o mais recente de uma longa lista de poetas afegãos adorados, sendo o mais famoso o místico sufi Rumi, cujas obras de amor e fé permanecem populares em todo o mundo. Neste país, aforismos poéticos surgem nas conversas cotidianas, adotados por afegãos de todas as esferas da vida. Em partes de Cabul, não é raro ver homens amontoados transferindo arquivos de áudio de leituras poéticas de um telefone celular para o outro.
Embora a poesia seja amada, raramente é paga. Alguns escritores assumem empregos públicos, concluindo que o salário fixo e as responsabilidades modestas podem ser favoráveis ao seu trabalho. Turab, por sua vez, ficou em sua garagem suja na periferia da cidade de Khost.
"Esta é a minha vida, o que você vê aqui: bater no ferro, cortá-lo, alongá-lo", disse ele. "Eu ainda não me digo poeta".
Há outra coisa, porém, que até o franco Turab parece relutante em confessar: ele é quase analfabeto. Embora consiga, com dificuldade, ler uma cópia impressa, ele nem escreve nem lê a caligrafia dos outros, disse ele. Ele constrói sua poesia de cabeça, e confia na memória para retê-la e nos outros para gravá-la.
Turab cresceu em uma pequena aldeia da província de Nangarhar. Era pobre até mesmo para os padrões afegãos. Seu pai era agricultor e plantava apenas o suficiente para alimentar a família. Embora tivessem pouco, ele lembra com carinho de sua infância --particularmente dos dias que passava estudando com o poeta da aldeia, um homem que amava por suas palavras afiadas e sua honestidade.
Depois da invasão soviética em 1979, Turab, que era adolescente na época, mudou-se com a família para o Paquistão. Lá chegou a fase adulta, retornando ao Afeganistão apenas duas décadas mais tarde, com um comércio, uma esposa e um público modesto como poeta.
Ele continuou refinando sua arte depois de seu retorno, cultivando um público cada vez mais amplo. Sob o governo Talibã, ele se atreveu a publicar um livro com sua obra --um erro grave.
"O Talibã me bateu muito", disse ele, balançando a cabeça e em seguida abrindo um sorriso. "Depois disso, eu decidi que publicar não era uma boa ideia".
Embora ele seja declaradamente leal aos pashtuns, ele não tem amor pelos talibãs, estreitamente identificados com as tribos pashtuns. Ele diz que odeia o terror que cultivam e a forma como desestabilizaram o Afeganistão. E os criticam por serem tão ineptos e alienados quanto o governo apoiado pelo Ocidente.

Ó cemitério de caveiras e opressão
Rasgue a terra e reapareça
Eles me provocam com o seu sangue,
E vocês jazem intoxicados com pensamentos de virgens.

A estrada de terra diante de sua loja percorre todo o caminho até o Paquistão, e é uma salvação econômica. Há comerciantes ao longo de toda a estrada, vendendo de tudo, desde neve para evitar o calor escaldante até frutas da estação. Periodicamente passa um comboio de veículos americanos, quebrando o feitiço de uma cena totalmente afegã.
"Às vezes fico surpreso que as coisas não estejam caindo aos pedaços", disse ele, unindo as mãos enquanto reflete sobre os anos de guerra e de presença estrangeira. "Mas então percebo que há uma lei social aqui que mantém o país unido, mesmo que não haja nenhuma lei governamental".
Embora ele tenha sido crítico da ocupação norte-americana, ele nota o progresso que veio com ela: estradas, energia elétrica e escolas. São outras partes do legado ocidental no Afeganistão que o deixam preocupado.
"A democracia vai prejudicar e eliminar nossas leis tribais", disse ele. "O remédio prescrito pela democracia não foi adequado para a doença desta sociedade".
Tradutor: Deborah Weinberg
(fonte:uol)

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