sexta-feira, 15 de agosto de 2014

1599-1899: um paralelo de gigantes, Fabio de Sousa Coutinho



 

Para Bebel e Rodrigo

 

Com intervalo de exatos 300 anos, duas das maiores construções literárias da humanidade foram trazidas a lume: em 1599, a grande tragédia Hamlet, do inglês William Shakespeare; em 1899, o romance realista Dom Casmurro, do brasileiro Machado de Assis.

A separá-las, além da distância temporal de três séculos, os idiomas em que foram escritas, os gêneros característicos de sua elaboração. A uní-las, a indisputada genialidade de seus autores, a certa e justa consagração para a eternidade, o enfrentamento, no mais alto grau de indagação filosófica, do problema existencial traduzido na dúvida.

No Hamlet, Shakespeare manifestou, pelas palavras de seu fascinante e fascinado Príncipe da Dinamarca, o enigma que perpassa a própria essência de nossas vidas: ser ou não ser, eis a questão (“To be or not to be, that is the question”). No Dom Casmurro, o bruxo do Cosme Velho, a cuja obra, se faltam pujança e paixão, sobram estilo e viva observação psicológica, pôs sua personagem Capitu no centro de dilema que consiste em haver ocorrido, ou não, traição conjugal ao marido Bento Santiago, o Bentinho.

Inventor do humano, “deus mortal”, na expressão-síntese de Harold Bloom, William Shakespeare conquistou, na história da civilização ocidental, o lugar mais marcante a que pode almejar um homem de letras. Trabalhador incansável, a produção do bardo, em 1599, não se limitou à construção do visceral Hamlet. São, também, daquele ano outras três de suas mais famosas peças: o drama histórico Henrique V, a tragédia de aprendizado Júlio César e a alta comédia Como gostais (“As you like it”). Tinha Shakespeare, então, precoces e impressionantes 35 anos de idade. Nascido em 1564, viria a falecer em 1616, aos 52, numa faixa etária que não discrepava dos padrões estatísticos de mortalidade, na era elisabetana.

O carioca Joaquim Maria Machado de Assis era um provecto cidadão de 60 anos, Presidente da mais importante instituição cultural do País (que fundara em 1897), quando concluiu seu célebre romance, hoje rigidamente incorporado ao imaginário brasileiro e respeitado, à unanimidade, pela crítica internacional. Num livro precioso, A Biblioteca de Machado de Assis (ABL/Topbooks, Rio de Janeiro, 2001), organizado por José Luís Jobim, é possível comprovar, sem esforço, a sólida presença de William Shakespeare na inspiração e na fatura machadianas. Leitor ávido, nosso maior escritor recorria aos textos poéticos e teatrais do incomparável dramaturgo em sucessivas traduções francesas, editadas em dez volumes pela Librairie Hachette, entre 1867 e 1873.

Dono de fino humor e agudo senso de investigação anímica, Machado, a partir da influência shakespeariana, antecipou muitas conquistas modernistas, além de plantar sementes conceituais  que Sigmund Freud mais tarde formalizaria em tratados magistrais. 

Os emblemáticos Hamlet e Capitu, criações raras vezes igualadas na literatura universal, são frutos, com 300 anos de diferença, da mesma árvore esplendorosa que enseja a continuidade da arte literária, per omnia saecula saeculorum. As dúvidas que encerram obras como Hamlet e Dom Casmurro são o que de mais denso se imaginou sobre as circunstâncias que movem e atormentam as criaturas humanas. Shakespeare e Machado de Assis, ao plantá-las com estética indelével, nos ensejam a capacidade de lidar, de modo consciente e maduro, com a falta de sentido do mundo, a inexorabilidade de nosso destino, a ideia de quem somos e de que, na vida, não há coincidências.

 

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