sábado, 18 de maio de 2019

O Ateneu, capítulo Ideologia do personagem brasileiro

(trecho do livro A ideologia do personagem brasileiro, Ed. UnB, 2007, 3° capítulo)
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O Ateneu aproxima-se e afasta-se do modelo exemplar e inaugural do romance de formação.
O romance de formação ( o Bildungsroman ) tem origem na publicação, na Alemanha, entre 1794 e 1796, do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Não é o próprio Goethe que cunha a expressão, mas deve-se, sim, a seu romance, considerado o iniciador do gênero, esta denominação. Ele surge aparentemente como uma reação ao romance de provação.(1) A provação do herói está ligada à crise e à solução da crise, mas não à transformação e ao crescimento humano do herói. O que agora se apresenta é um novo meio, o acompanhamento do personagem, principalmente nas suas angústias e dúvidas, na sua interioridade e não no confronto heróico com as forças da natureza ou os antagonismos do homem adulto contra a sociedade ou em nome dela. Cumpre recordar que o romance de formação não apresenta uma estrutura diferente ou uma forma estabelecida. Ele é assim classificado por suas características temáticas. Ferreira Pinto, que estudou o Bildungsroman feminino em quatro escritoras brasileiras, relata a predominância do conceito em relação à formação do personagem masculino na literatura e acrescenta o fator pedagógico que subjaz a essas obras. Ela cita Morgenstern e Jost, este último relacionando o Bildungsroman com as preocupações didáticas de época: “A expressão literária de um novo ideal de educação, segundo o qual, em lugar de educar a criança, é necessário permitir que ela se eduque a si mesma”.(2)
Em O Ateneu não existe o espaço amplo de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Em O Ateneu está o espaço restrito, asfixiante, cerceador, contrastando com a exuberância exterior de Os anos de aprendizado... com suas cidades do interior da Alemanha, suas montanhas, suas aventuras galantes. Os dois se igualam e se afastam no espaço do aprendizado: no brasileiro, a escola é também escola de vida; no alemão, a escola é o teatro da vida.(3)

Provação e aprendizado
Em todo romance, contudo, está o germe da transformação do personagem, de seu aprendizado de vida e de provação diante de vários desafios. O romance não é uma narrativa estritamente dramática como são o teatro e o cinema. Neles, a idéia de conflito é central. De qualquer maneira, há permanência de uma essência dramática no romance. Dessa forma, os personagens principais dos romances atravessam várias páginas enfrentando obstáculos reais ou imaginários, nos quase se mesclam as noções de provação e de autoconhecimento. No romance, a propensão é para a modificação do personagem principal. Mesmo nos romances em que o grau de efetiva ação diminui, a transformação interior do personagem pode ocorrer. Em alguns romances, o grau de interioridade maior ajuda o personagem a desenvolver-se e a transformar-se. Desta maneira, grosso modo, todo romance implica transformação do personagem principal por meio de confrontos com a realidade – provação – e seu amadurecimento ou seu aprendizado. O aprendizado nem sempre é positivo, levando o personagem a se tornar maduro, sábio ou feliz.
Fiquemos com o elemento mais forte do modelo temático do romance de formação: o da transformação. Os graus de transformação variam de romance para romance sem que, entretanto, eles desapareçam. Em O Ateneu, observamos que o grau de transformação de Sérgio é pequeno. O grau de transformação não apenas está ligado ao que o personagem viveu como também à sua capacidade de absorção do que foi vivido. Sérgio não parece querer mudar ou relatar a mudança. Prefere a observação.

A dissolução narrativa de O Ateneu
O Ateneu é um romance denso e complexo, enredado com suas frases rebuscadas, que não são apenas expressões superficiais de virtuosismo, mas conseqüência mesmo de um emaranhado psicológico do narrador-personagem em sua aventura sentimental. Em O Ateneu, a escola não o prepara para o mundo. O mundo de Sérgio é fechado. Não há comunicação do mundo espectral, que é a escola, com o mundo de fora, nem muito menos uma rede de comunicação entre os entes, sejam eles humanos ou instituições, tudo está estagnado num tempo e espaço únicos.
O Ateneu destoa do romance naturalista brasileiro do fim de século (A carne, O bom crioulo, D. Guidinha do Poço, Luzia-Homem), e em vez do narrador onisciente e com uma proposta de tese social coloca um narrador fluido, disperso, que não se adensa, observa, comenta, relata impressões. Sendo o narrador personagem, logo o Sérgio aluno de O Ateneu também será difuso, fluido, disperso, marcado apenas pelas impressões da vida no colégio.
Essa dubiedade narrativa, ou seja, metade impessoalidade verbal(4), metade observação personalíssima que deforma a realidade, não daria validade de romance pródigo em influência do meio político em que vivia Raul Pompéia. Mesmo a denúncia da instituição é satírica, recortada, escarnecida, mais divertimento pueril que contundência de adulto. Nisso, por exemplo, são mais diretos, descarnados, ferinos, os personagens brutalizados, como Lenita, de A carne (que assiste com gozo ao chicoteamento de um escravo), ou como Amaro, de O bom crioulo, em sua homossexualidade desabrida, colorindo com tintas fortes a vida na Marinha e as relações cruéis entre a oficialidade e a marujada, subjugada também pelo castigo da chibata.
Os outros personagens de O Ateneu são apenas traços ligeiros, esboços na tela que ainda não está pintada. Excetuando-se Aristarco, os amigos de Sérgio apresentam-se como figurações sem contornos, aparições relâmpagos e, ao mesmo tempo, em forma de carrossel, revelam-se como rostos dispersos. As amizades vão e vêm. Ficam apenas gestos, atitudes, linhas gerais. Aqui e ali, o narrador mostra a mudança constante de amizades, sensações e descobertas. Não há propriamente enredo. A narrativa caminha linearmente, como, no dizer do narrador, crônica de saudades – união de historicidade (crônica) com elementos subjetivos (saudades).
Ainda que seja enquadrado no romance de formação, O Ateneu não consegue dar uma conformação anímica mais aprofundada do personagem, transformando-o num ambulante de sensações e anotador atento das aventuras colegiais. Essa dificuldade de adensar o personagem sem que, contudo, o coloque numa vertigem de peripécias joga o personagem no limbo das aventuras. Ele é um ser vagante pelas páginas do livro sem que se saiba exatamente onde quer chegar. Sabemos o que a superfície nos oferece: crítica de costumes, denúncia da arbitrariedade da instituição escola, o ensino como repressão, registro de sentimentos de um colegial. Por trás de O Ateneu está uma escritura moderníssima – abandona a estrutura romanesca e mergulha numa dissolução dos esquemas tradicionais. Mais ainda – a dissolução – quando sabemos o pano de fundo da vida literária brasileira no final do século passado. De um lado a literatura refinada e inglesa de Machado de Assis, de outro o naturalismo de Aluísio de Azevedo, Júlio Ribeiro, Adolfo Caminha. (5)
Talvez a intenção de Pompéia não fosse propriamente criar um romance. Ocorre, contudo, que produziu uma prosa refinada que não tinha a ironia desencantada de Machado, ainda que houvesse uma ironia ampla, ridicularizando os discursos pomposos ( inclusive ingressando na paródia lingüística ), satirizando os companheiros, os professores e, alvo principal das críticas de Sérgio, a vaidade de Aristarco, o diretor do colégio. Mário de Andrade vai apontar um fato curioso em relação a Aristarco, inserindo-o na galeria dos tipos sociais, rara em nossa literatura.

"Já foi observado que a ficção brasileira não cria tipos sociais e Aristarco é um dos únicos que possuímos com a consubstanciação psicológica de um ser de classe. Este será sempre um dos maiores méritos de Raul Pompéia e sua invenção genial. Aristarco ficará com o tipo heróico e sarcástico do diretor de colégio de uma unidade e um poder de convicção como não conheço outro congênere na literatura universal. E no entanto não são raros os livros que descrevem a vida dos colégios". (6)

A crítica acusou em O Ateneu o exagero de recriminação ao estabelecimento de ensino. Mais do que a lubricidade de alguns momentos, a feminilidade do personagem parece ter incomodado o ataque à categoria ensino que movia todo o romance. Não seriam, diriam alguns críticos, as exceções como Pompéia pintou a escola que se reproduziriam em todos os colégios. Pompéia havia deformado e, de um caso isolado, estendera sua crítica ao ensino como um todo. Pompéia é até mesmo simpático a algumas atividades da escola, como, entre outras, os exercícios físicos e as disputas oratórias. Mas por debaixo de O Ateneu corria o lençol freático da construção do romance como projeção difusa. O difuso está no personagem, está no narrador, está na ausência de trama, está no desenredo.


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Notas:
(1)“A idéia de provação não possui relação com a formação do homem; em algumas das suas formas ela conhece a crise, a regeneração, mas não a evolução, a transformação, a formação gradual do homem. Ela provém de um homem pronto e submete-o à provação segundo um ponto de vista ideal também já pronto [...] A vida, com as suas peripécias, já não serve de pedra de toque e de meio de provação para o personagem acabado (ou, na melhor hipótese, serve de fator estimulante para a natureza do herói já pré-formada e predeterminada), agora a vida, com os seus eventos, esclarecida pela idéia da transformação, revela-se como uma experiência do herói, uma escola, um meio, que pela primeira vez formam e modelam seu caráter e sua visão de mundo. A idéia de transformação e da educação permite organizar de modo novo o material ao redor do personagem e revelar nesse material aspectos completamente novos”. (BAKHTIN, 1993, ps.185 e 186).
(2)FERREIRA PINTO, 1990, p. 11.
(3) O teatro não era apenas uma expressão estética da qual Goethe se apropriou, mas o germe do drama estava em sua vida de forma tão vital que o autor alemão não só escreveu para o teatro como, no ano de 1791, em Weimar, ele passa a ser diretor de um teatro permanente. Em Os anos de aprendizado..., o teatro dará ao romance o pano de fundo onde as angústias do jovem, em seu aprendizado da vida, se fazem concomitantemente com o aprendizado da arte dramática. Nesse sentido, o teatro é duplo da realidade: Meister afia-se nas artes dramáticas assim como se prepara para representar na vida real.
(4) Veremos mais adiante o que Silviano Santiago chamou de o "eu consciente" em O Ateneu.
(5) Mário de Andrade irá discordar de que O Ateneu se afasta do naturalismo: “Ele representa exatamente os princípios estéticos-psicológicos, os elementos e processos técnicos do Naturalismo. É sempre aquela concepção pessimista do homem besta, dominado pelo mal, incapaz de vencer os seus instintos baixos – reflexo dentro da arte das doutrinas evolucionistas. É sempre aquele exagerar inconsciente e ao sério das manifestações destrutivas do ser, baseado numa psicologia do terror, que concebe os homens como bestas e ignora “a parte do anjo”. [...] Se ainda existem visões de delicadeza no livro, elas derivam muito mais do próprio assunto que de uma fuga anti ou extranaturalista do autor. E este transvazou o seu temperamento na obra, e de maneira dolorosíssima, se demonstrando incapaz do exercício da amizade e, conseqüentemente, de uma cruel incompreensão ante a adolescência.”  (ANDRADE [s./d.], p. 184).
(6) Idem , ibidem, p. 180.


(...) continua

fim do trecho selecionado
pgs 67 e 68

imagens retiradas da internet

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