segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Contos de Maldoror, Lautréamont

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Leonardo Fróes

Isto é o Conde de Lautréamont, que disse ter feito “um pacto com a prostituição a fim de semear a desordem entre as famílias”: o elogio da pederastia, do vampirismo, da crueldade. A exortação ao canibalismo, como quando seu leitor é instado a arrancar os braços da mãe, picar em pedaços e comer logo em seguida sem demonstrar emoção. O ilógico zoo de seres híbridos que povoa as visões de Maldoror, como o homem com cabeça de pelicano, a lâmpada que se transforma em pessoa, o hermafrodita solitário que ele surpreende no bosque ou a fêmea de tubarão que o recebe, com olhares ferozes, mas sem carnificina, para fazer amor sob o mar.

Mas isto também é Lautréamont: o criador provocante de uma poesia em prosa (e em pânico) que resistiu à ação do tempo, ficando jovem para sempre, e cujo “hálito pernicioso”, como ele desejou que acontecesse, ainda hoje parece “subverter até mesmo as verdades absolutas”. Tudo, para esse escritor sem limites, acha-se em mutação permanente. Depois dos três primeiros dos seis “Cantos de Maldoror”, nem ele sabe mais, de tanto que se esgotou em blasfêmias, enredado no aperto das suas visões tentaculares, se realmente “é um homem, uma pedra ou uma árvore quem vai começar o quarto canto”.
Sabe contudo, e com que afã demolidor, construir sentidos novos ao mutilar sem piedade os conceitos velhos de então. No ar das circunstâncias mais torpes, sabe colher imagens ternas, e faz algumas das comparações mais fantásticas que alguém já viu por escrito. Mervyn, um “filho da loira Inglaterra”, um dos muitos adolescentes bonitos que assomam em passagens deste livro de horrores, e que alguns comentaristas tomaram por sucessivos avatares de um mesmo amor malogrado, é tão belo “como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecção, de uma máquina de costura e um guarda-chuva!”
Foram decerto as imagens desse tipo, cujo recorte inusitado abre perspectivas sem fim, que levaram os surrealistas franceses, por volta de 1924, a retirar Lautréamont do limbo e consagrá-lo como um precursor fabuloso do seu movimento que em breve repercutiria no mundo. Poucos anos depois, Salvador Dalí, um artista aparentado, por revelar a mesma inclinação aos monstros e à monstruosidade dos sonhos, fez o hoje célebre conjunto de gravuras com que ilustrou “Os Cantos de Maldoror”.
Se a obra em si já é um grande enigma, entre outras coisas porque resultou de pastiches, colagens, inserções inexplicadas de alheios trechos criativamente alterados, mais enigmática ainda é a vida do autor. Uma vida que a rigor não existe, tão escassos são seus vestígios para compor a ideia de um todo.
Sabe-se apenas que Isidore Ducasse, que se assinou como Conde de Lautréamont ao publicar os “Cantos” completos (1869) e que fez do desvairado Maldoror uma ambígua projeção de si mesmo, nasceu em Montevidéu, de pais franceses, em 1846. Recém-nascido, ficou órfão de mãe. O pai mandou-o, aos 13 anos, estudar na França. Esteve interno em dois liceus, depois sumiu por algum tempo. Às oito da manhã de 24 de novembro de 1870, Isidore Ducasse, então com 24 anos, morreu num quarto de hotel em Paris, onde era mantido por mesadas do pai. Na época, com a França em guerra e a capital sitiada por batalhões prussianos, a fome, o frio e as febres causavam mortes aos montes, com precipitados enterros. Nunca se soube de que morreu o poeta. Nunca ninguém achou seu túmulo.
Todavia, desde a consagração surrealista, pesquisadores de várias línguas têm enfrentado os dois enigmas, a obra e a vida, com uma paciência exemplar. Graças a esses trabalhos, sabe-se hoje, por exemplo, que a longa cena de amor entre Maldoror e a tubaroa é a transcrição quase fiel de uma descrição, por Michelet, dos hábitos sexuais dos tubarões. Do mesmo modo, grande parte do bestiário que vem à tona nos “Cantos” foi extraída de descrições científicas que a pena alucinante do artista modificou como quis. Ducasse, deduz-se, terá sido um leitor voraz de obras de história natural.
Em “Lautréamont austral”, Leyla Perrone-Moisés e Emir Rodríguez Monegal partem de um pequeno detalhe, a descoberta de dois livros que pertenceram a Ducasse, ambos em espanhol, para acentuar a importância que o seu bilinguismo e os anos no Uruguai terão tido na criação da obra. Para os autores, um desses livros, um manual de retórica pelo espanhol Gomes de Hermosilla, “pode ter sido o principal inspirador dos procedimentos de Ducasse e um dos textos de base para suas paródias”.
Outra constatação a que chegam é que erros gramaticais apontados no francês dos “Cantos”, por críticos antigos, em espanhol são considerados usuais e corretos, justificando-se pelo fato de o autor estar entre línguas. O bilinguismo do poeta seria assim causa de erros e êxitos, pois foi “essa condição que lhe permitiu inovar na língua francesa com mais liberdade do que aqueles que nunca saíram dela”.
“O plágio é necessário”, escreveu Isidore Ducasse na única obra que mandou imprimir sob seu nome — as duas plaquetes intituladas “Poesias”, onde, em vez de versos, há máximas teóricas que de certa forma condenam o arrebatamento ultrarromântico dos “Cantos de Maldoror”. Como no caso das descrições do bestiário, já se provou que muitas dessas máximas são citações adulteradas de moralistas franceses como Vauvenargues, Pascal e La Rochefoucauld. E citações adulteradas, às vezes, para dizer o contrário do original, ou quase.
Primorosamente reeditada, a tradução de Claudio Willer, que data de 1997 e é um clássico, pela força e o brilho, na estante das nossas grandes traduções literárias, traz a obra completa: os “Cantos”, as máximas de “Poesias” e, em anexo, sete cartas de Isidore Ducasse, um dos pouquíssimos vestígios para se imaginar a existência do montevideano iconoclasta que, como a sombra de um maldito, só nos ficou em palavras.
*Leonardo Fróes é poeta e tradutor

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