quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A influência russa na literatura brasileira , Adelton Gonçalves

Prêmio Jabuti 2012, “Da Estepe à Caatinga: O Romance Russo no Brasil” analisa a recepção da literatura russa no País a partir de dois eixos: pesquisa documental da recepção crítica e estudo da bibliografia comparatista que lida com outros casos de recepção da literatura russa no Ocidente
Adelto Gonçalves
Especial para o Jornal Opção
Que a literatura rus­sa influenciou boa parte da literatura produzida no Bra­sil, especialmente no final do século 19 e na primeira metade do século 20, nenhum crítico de bom senso pode colocar em dúvida. Até que ponto chegou essa in­fluência e como seu deu, pois, na maioria, por desconhecimento do idioma russo, os autores tiveram acesso apenas a traduções de segunda mão do francês, é que nunca ninguém havia estabelecido.

Essa questão, porém, já está devidamente esclarecida e aprofundada, depois da pesquisa de proporções ciclópicas empreendida pelo professor Bruno Barretto Gomide em sua tese de doutoramento a­presentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Uni­camp), que saiu em livro em 2011 pela Editora da Univer­sidade de São Paulo (Edusp): “Da Estepe à Caatinga: O Romance Russo no Brasil (1887-1936)”, Prêmio Jabuti 2012, da Câmara Brasileira do Li­vro, na categoria Teoria e Crítica Literária.

As fontes deste livro foram extraídas de arquivos particulares de escritores e de uma extensa pesquisa que o estudioso fez em jornais, revistas e livros publicados entre 1887 e 1936, valendo-se também de consulta não só em arquivos públicos e de universidades em Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro como nos Es­tados Unidos, especialmente nas bibliotecas das universidades de Illinois, Indiana, Stan­ford e Califórnia.

Neste livro, a recepção da literatura russa no Brasil é estudada a partir de dois eixos: pesquisa documental da recepção crítica do romance russo e estudo da vasta bibliografia comparatista que lida com outros casos de recepção da literatura russa no Ocidente. Tudo isso acompanhado pelas discussões específicas fornecidas pela crítica literária e pela historiografia da cultura brasileira, como ob­serva o autor na introdução.

Os primeiros textos que utilizavam os romancistas russos como contraponto a questões literárias candentes no Brasil datam da segunda metade da década de 1880. Já o final da década de 1930 marca um mo­mento em que tais discussões perdem sua força e deixam de ser relevantes para a crítica. O trabalho conta ainda com um anexo que reproduz algumas fontes significativas, privilegiando as de mais difícil acesso.



É observar que a chegada do romance russo ao Brasil foi uma consequência marginal de um processo internacional iniciado na França, que o tornou uma sensação europeia em meados da década de 1880. Foi quando surgiram as traduções em escala industrial e livros de crítica que assinalavam a recepção desses romances em língua francesa.

Gomide aponta o ensaio “O Romance Russo”, de Eu­gène-Melchior de Vogüé (1848-1910), publicado em 1886, como o elemento basilar dessa recepção, pois era a ele que recorria a maior parte dos ensaístas, inclusive no Brasil. Entre os romancistas brasileiros, Lima Barreto (1881-1922) foi o que mais se deixou influenciar pelas ideias que o romances russos traziam im­plícitas, especialmente a partir do prefácio que Vogüé escreveu para “Recordações da Casa dos Mortos”, de Dos­toiévski (1821-1881).

O pesquisador observa que já havia conhecimento da literatura russa no Brasil antes mesmo da década de 1880, mas esses contatos se davam em escala diminuta. A partir daquela data, o seu “surgimento súbito” no País, em função do que ocorria na França, passou a atiçar a criação de uma literatura genuinamente nacional, como observaram ao tempo José Carlos Jr., um crítico paraibano hoje quase esquecido e justamente “ressuscitado” por Gomide, e Clóvis Be­vilacqua (1859-1944). Mas, como constata Gomide, essa interpretação não foi unânime. Para Tobias Barreto (1839-1889), por exemplo, os romancistas russos eram a negação de tudo o que a cultura francesa representava.

Para Silvio Romero (1851-1914), os russos seriam também o melhor exemplo antípoda de Machado de Assis (1839-1908). Se o escritor fluminense construía delicados estados psicológicos de suas personagens à maneira do francês Paul Charles Joseph Bourget (1852-1935), Romero fazia o contraste com a estética radical do choque, exemplificada por Edgar Allan Poe (1809-1849) e Dostoiévski, observa Gomide. E acrescenta: para Romero, o autor fluminense ficava “bem abaixo de Dostoiévski, Poe e até de Hof­fmann (1766-1822), quando este envereda, como o próprio Machado diria, pelo distrito da patologia literária”.



Portanto, o caráter inovador da prosa russa foi imediatamente detectado pelos críticos brasileiros, que passaram a utilizá-lo largamente como termo de comparação em suas críticas e recensões. E até a apresentá-lo como um modelo de emancipação para a literatura brasileira.

Na primeira parte de seu livro, Gomide trata da divulgação dos romancistas russos a partir da metade dos anos 1880, especialmente de 1883 a 1886. E apresenta exemplos do aumento vertiginoso do número de traduções e do entusiasmo nos meios intelectuais pelo novo fenômeno literário. Mos­tra ainda que, quando a revolução de 1917 assustou o mundo, já havia no Brasil uma tradição de três décadas de discussão do romance russo em periódicos e livros de crítica.

Portanto, associar autores como Dostoiévski, Turguêniev (1818-1883), Tolstói (1828-1910) e Aleksandr Púchkin (1799-1837) ao bolchevismo só podia partir de mentes obnubiladas, o que não é de admirar, pois, à época da última ditadura militar (1964-1985), o livro “Juan Rulfo: Autobiografia Ar­mada” (Buenos Aires, Corre­gidor, 1973), de Reina Roffé, teve a sua importação barrada, por volta de 1975, porque o censor fez uma interpretação beligerante da palavra “armada”, quando o título queria dizer apenas que a autobiografia havia sido “armada” com declarações do escritor retiradas de entrevistas publicadas em épocas diversas.

Na segunda parte de seu trabalho, Gomide estuda as décadas de 1920 e 1930, quando era flagrante o impacto da revolução bolchevique. E mostra claramente que, ao contrário do que se supõe, a literatura russa nunca foi uma espécie de patrimônio da esquerda, pois intelectuais católicos, como Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), Tasso da Silveira (1895-1968) e Jackson Figuei­redo (1891-1928), já discutiam sua influência na literatura mundial, especialmente a partir de Dostoiévski, Maksim Górki (1868-1936) e Tolstói.

A segunda parte do livro apresenta, além de um panorama do mercado editorial da década de 1930, textos que desconfiam abertamente das interpretações geradas no fim do século e tentam cercar os romancistas russos por outros ângulos. E contestam a ideia de que o niilismo de Dos­toiévski e de outros escritores russos teria preparado terreno para o avanço do comunismo e a vitória dos bolcheviques em 1917, apenas porque a literatura russa sempre esteve associada a questões sociais. Na conclusão, Gomide defende que é anacrônico reler os primeiros momentos da recepção da literatura russa no Brasil de acordo com os resultados posteriores à revolução de 1917.



Como o livro vai até 1936, fora da análise de Gomide fica o recente renascimento do interesse do leitor brasileiro pelo romance russo que, a rigor, deu-se depois do lançamento, em 2001, da primeira tradução de “Crime e Cas­tigo”, de Dos­toiévski, feita diretamente do russo por Paulo Bezerra, pela Editora 34, de São Paulo. Em seguida, saíram vários livros traduzidos diretamente do russo por Paulo Bezerra, Boris Sch­nai­­derman, Fátima Bianchi, Lucas Simone e outros. Em 2011, saiu também “Gente Pobre”, de Dostoiévski, com tradução de Luíz Avelima, pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-(SP).

Bruno Gomide (1972) é doutor em Letras pela Uni­camp, com estágio de doutorado na Universidade da Cali­fórnia, em Berkeley. Realizou cursos nas universidades de Illinois, In­diana, Cambridge e Linguística de Moscou. Foi pesquisador-visitante no Instituto Górki de Literatura Mundial, em Mos­cou, com apoio da Fundação de Amparo à Pes­quisa no Estado de São Paulo (Fapesp). É o organizador do grupo de trabalho de Literatura Russa da Associação Brasileira de Lite­ra­tura Coparada (Abralic).

Organizou a “Nova Anto­logia do Conto Russo” (1792-1998), lançada recentemente pela Editora 34, que reúne nomes conhecidos no Brasil como Púchkin, Gógol, Dos­toiévski, Tchekhov, Tolstói, Pasternak, Bábel e Nabókov e outros menos conhecidos, como Odóievski, Grin, Chalá­mov, Kharms, Platónov e So­rókin, num total de 40.
Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Univer­sidade de São Paulo.


Leia um trecho de “Da Estepe à Caatinga: O Romance Russo no Brasil
A presença de alguns escritores russos na literatura e na vida literária brasileira volta e meia é evocada por pesquisadores de tempos e propósitos vários. Sabe-se que houve, na década de 30, certa bruma dostoievskiana impregnando intelectuais. Ou que literatura russa e problemática social sempre foram companheiras de viagem. A circulação de Dostoiévski e Tolstói seria, então, reflexo de 1905 ou 1917, marcos “naturais” desse caminhar. E Lima Barreto o escritor filo-eslavo por excelência. São fenômenos reais e importantes. Em geral, mais pressentidos e esboçados do que efetivamente destrinchados.

Alguns passos foram dados nesse sentido. O pequeno livro de Leonid Shur privilegia as primeiras décadas do século dezenove, momento anterior ao da difusão efetiva da literatura russa no Ocidente. Boris Schnaiderman, nosso principal especialista na seara russa, escreveu artigos pioneiros sobre as relações literárias entre Rússia e Brasil. Apesar de indicarem sugestivas direções de pesquisa, tal campo de estudos não foi prioridade dentro da sua extensa produção. “O Ano Ver­melho”, de Moniz Bandeira, Clovis Melo e T. A. Bandeira, traz um pouco da literatura russa a reboque da profunda impressão gerada pela revolução russa. Na mesma linha existem estudos sobre a relação de intelectuais brasileiros com as diretrizes do realismo socialista. No âmbito acadêmico, elementos comparativos Brasil-Rússia foram incorporados a ensaios recentes de historia cultural.

A inserção “russa” mais conhecida na historiografia literária bra­sileira, talvez devido à justa reputação de pesquisador minucioso de seu desbravador, forneceu-a capítulo de Brito Broca sobre as vogas literárias de inícios do novecentos. Tolstói e um dos cinco escritores con­templados. Sua recepção e mostrada na conexão exclusiva com pensadores anarquistas e socialistas brasileiros. Atrelada, de forma mais geral, a uma inspiração utópica e humanitária tão grandiosa quanto vaga. A conexão com o anarquismo foi devidamente ampliada em trabalhos monográficos publicados a partir das décadas de 70 e 80. Estes desdobraram aspectos literários do romance tolstoiano de Fabio Luz e Curvelo de Mendonça e a circulação de Tolstói e de Górki, em prosa, verso, teatro e panfleto, nos meios libertários. Confluente a esse ramo é a investigação sobre a literatura militante de Lima Barreto.

Proponho a entrada no campo de estudos da recepção da literatura russa no Brasil por meio de um panorama articulado em dois eixos: pesquisa documental da recepção crítica do romance russo e estudo da vasta bibliografia comparatista que lida com outros casos de recepção da literatura russa no Ocidente; ambos mediados pelas discussões específicas fornecidas pela crítica literária e pela historiografia da cultura brasileira. A reconstituição da lógica específica do discurso crítico, tarefa a que me proponho nas páginas seguintes, complementará, espero, as pesquisas já́ existentes. Talvez esse percurso abra caminho para que as paixões do mundo da política possam ser reconduzidas para a literatura russa de maneira mais nuançada.

A chegada do romance russo ao Brasil foi pequena parcela de processo internacional deflagrado na França. Outros países deram sua cota de contribuição, mas a influência francesa foi determinante, especialmente no quinhão que nos cabe. Não se pode, pois, conhecer a crítica literária feita no Brasil sobre Tolstói e Dostoiévski sem remeter a esse cenário transnacional. O romance russo era a grande sensação europeia em meados da década de 1880. Na verdade, foi “inventado” para consumo internacional nesse período, quando surgem traduções em escala industrial e livros de crítica que, de forma pioneira, deram o tom (e estabeleceram os limites) do que seria dito depois. As questões e balizas aportadas por essa bibliografia, em especial pelo ensaio “O Romance Russo”, de Eugène-Melchior de Vogue (1886), tornaram-se logo paradigmáticas. A maioria dos críticos, ensaístas e intelectuais recorria a ela para lastrear seus comentários. Lima Barreto buscou no prefácio de “Recordações da Casa dos Mor­tos”, escrito por Vogüé, pistas para falar de Dostoiévski. Esta mediação terá́ agido de forma quase tão decisiva na visão que o autor carioca tinha dos literatos russos quanto o diálogo com as tendências libertárias e com o “maximalismo”.

A descoberta do romance russo pela crítica fora da Rússia foi essencialmente literária. Embora a política tenha logo se tornado aspecto indissociável da circulação social da literatura russa, e a imagem do escritor-oprimido-pela-autocracia tenha servido de imã poderoso, o entusiasmo pelos escritores recém-descobertos se devia à forma inovadora como eles encaminhavam os mui discutidos problemas do realismo e do naturalismo. A seu modo, um ensaio como “O Ro­mance Russo” era engajado e combativo. Mas suas ressonâncias missionárias — era preciso, no entender de seu autor, salvar a cultura francesa — radicavam-se nas reflexões acerca do romance e da estética. Quando Clóvis Bevilacqua defrontou-se com Dostoiévski em 1888-89 e produziu ensaio intitulado “Naturalismo Russo — Dostoievsky”, certamente tinha em mente as agitações “niilistas”, conhecidas já de duas décadas, e, do lado de cá, a campanha abo­licionista, na qual atuou. Isso é perceptível nas entrelinhas do ensaio. Mas sua abordagem do escritor russo indica interlocução com Vogüé e, como o próprio título dá a entender, com o problema de um gênero literário específico. A partir daí, Bevilacqua seguia para os entrecruzamentos de literatura e vida nacional, e, implicitamente, ponderava a posição social do artista e sua missão. Pretendo, nesta tese, reduzir o foco nesse último aspecto. Em contrapartida, trarei à tona os argumentos contidos no núcleo crítico e acompanharei algumas de suas apropriações no espaço e no tempo.

Daí as delimitações no escopo da pesquisa. Por quê estudar a recepção do “romance russo”, e não de Dostoiévski ou de Tolstói isoladamente? Embora a fortuna crítica de cada um dos romancistas tenha apresentado peculiaridades, algumas delas examinadas ao longo da tese, no período aqui delimitado a unidade semântica “romance russo” lhes abarcou. A tendência era tratar aqueles escritores em bloco e canalizá-los no romance, logo classificado como ponta de lança da “mensagem” russa. A redução é típica da recepção de literaturas desprovidas de tradição de estudos fora de seus locais de origem. As diferenças subsumem-se num modelo interpretativo que confere inteligibilidade e legitimidade a cada um dos casos individuais. Em outras palavras: para que a literatura russa fosse transformada em moeda de troca no mercado internacional de bens simbólicos do fim do oitocentos, teve que ser condensada em uma única ca­tegoria. É com esse modelo que os intelectuais e críticos brasileiros estavam dialogando. Sem que tivessem, todavia, deixado de perceber diferenças entre autores particulares, ou estivessem alheios a outras manifestações da cultura russa — poesia, teatro, dança, música, e a própria “alma” russa, estetizada e transformada em objeto de consumo.

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