sábado, 6 de novembro de 2021

Capítulo 11 de O viúvo

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Meus olhos agora são de papel. Gosto da idéia de pensar em meus olhos como papel. Passei a vida inteira lendo, não tenho nada contra o cristalino, a retina, veias e músculos se transformarem em papel. Há realidade bastante no barco pregado na parede. É um Portugal de papel. O norte de Portugal transmuda-se nas janelas absurdas de Magritte. Fixo meus olhos ali. Meus olhos não navegam, mas enchem-se de maresia. Meu alheamento também tem cheiro – de mim.

            Ali está o porto, precário, diminuto, de pedra, antigo. É um pequeno píer de uma vila. Lá no fundo estão os casarios gregos da vila portuguesa. Não há gente. O barco mesmo posa sua fisionomia de madeira para a foto.

            O casario é branco e sobe encostas. Cada casa é um degrau branco. E as janelinhas, mais parecem escotilhas em terra seca, nos miram abertas ao sol quente e atlântico. Há uma secura ancestral na foto, embora em primeiro plano esteja o mar. Há também enorme doçura, uma doçura tão compacta e palatável que a sinto nos lábios, na língua mesma seca. E não o salgado da água que vejo. Só a maresia cheira; o casario adoça minha boca aberta.

A mesa é meu cais. Em volta dela, discutem. Por que discutem um processo se pescadores cuidam de separar os peixes, abrir-lhes o bucho, destripá-los, escamá-los? onde o processo cabe neste mundo de guelras, barbatanas e água salgada? O processo não é náutico, mas é salgado. Nele cabem as escamas, nele estão as escamas que devem ser separadas do corpo do bicho de papel. Como o barco da foto, que parece balançar ao sabor das minúsculas ondulações da água, oscilo sob uma onda sonora.

            A foto está um pouco amarelada. Eu mesmo também perco a cor. Queria um espelho. Meu rosto decomposto e azul como o rosto do meu pai. Logo, contudo uma paz vilareja volta a me invadir. Receio que a paz, como a luz fugitiva, também escape de mim. Não terei mãos, nada que possa conter, segurar, prender, colocar em caixa, a paz que se escama.

            Uma inexistente onda, saída da foto, me balança. Agora não tenho dúvida: estou no porto de pedra e não em volta da mesa. Chego a sentir enjôo, a sensação ondulatória, o piso mole das águas ou o piso desequilibrado das embarcações.

            Aquele Portugal de papel me saca da mesa de modo arrebatador. O único elemento agora da foto de casarios brancos e do cais antigo sou eu. O que se fixa na minha mente não é a foto, mas a reunião que passa a ser apenas uma fotografia. Estão todos imobilizados. O barulho que ouço não são as vozes deles. É o barulho do mar. O rumor grande e atlântico do mar aberto.

(disponível também em e-book)

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