sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O viúvo, análise de Zina Bellodi e outros

Resultado de imagem para otto dix




(do livro Memorialística. São Paulo, 2012. Magaly Gonçalves, Zélia Thomaz de Aquino)

            Em O viúvo temos a memória familiar do ângulo de visão do homem que protagonizou uma história, e que nos leva a participar de sua vida interior, não deixando claro o limite entre o sonho e a realidade.
            A obra de Ronaldo Costa Fernandes é uma narrativa feita pelo viúvo de Lídia, que morrera após relativamente longa doença, durante a qual o marido fugira a seu convite para fazer amor, com nojo. Ele é professor na universidade e tem a companhia do jardineiro José e da criada Benedita. Quando José morre, Benedita assume o cuidado das plantas. Durante certo tempo o viúvo mantém um caso com a economista de um banco, Fernanda, que tem dois filhos. É perseguido pelo marido dela com o carro e, numa perigosa manobra, sofre acidente, ficando seis meses em coma, quando Fernanda o abandona. Num certo momento passa a cuidar de Benedita, agora doente, levando-a ao médico. Ao fim pára de trabalhar, em condições não muito claras.
            O grande problema do viúvo é “sentir o corpo”, pois vive em completa dissociação, perdendo até a sensação dos pés como algo seu. É como se o corpo fosse estranho e com ele não se pudesse ligar. Esta sensação, de caráter físico, pode ser interpretada como a contrapartida de seu característico desligamento das pessoas. Realmente, a ideia que se tem é a de que ele não consegue estabelecer com o outro, seja ele quem for, uma relação verdadeiramente significativa.
            Esta incapacidade de relacionamento humano efetivo (traduzida na sensação de não sentir o próprio corpo) é acompanhada de uma certa incapacidade de ver na vida algum sentido.
            É na relação com Lídia que o viúvo conseguia tornar real o próprio corpo, de outra forma estranho:

         Aquele corpo para mim era um corpo inédito. Meu corpo também era inédito. Meu corpo não era inédito com Lídia. O quarto não existe. A gente inventa o quarto. O quarto não é feito de móveis ou de espelhos, cama, console com som. O quarto se resume a dois corpos. Certa vez agarrei Lídia na escada. Ali inventei o quarto.[1]

            O viúvo sente a realidade do próprio corpo e até “inventa” fatos da realidade na relação com Lídia. Esta relação parece, assim, como um possível clarão a iluminar uma vida de outra forma sem sentido. Na fuga ao marido de Fernanda, o viúvo sente mais claramente a falta de sentido que permeia sua experiência:

         (...) Saí correndo, desembalado, o carro rangendo pneu na curva, derrapando. A culpa não foi de Manfredo. Eu sabia muito bem o que estava fazendo. Senti o desejo de me matar, de abandonar não a perseguição de Manfredo, mas uma perseguição maior, a própria vida. (...)[2]

            Fica claro que se trata de alguém cuja luta vital é a busca de um sentido que lhe escapa constantemente, um sentido que talvez pudesse atingir com Fernanda, mas esta é uma relação condenada ao fracasso.
            No hospital, diante de Fernanda, mas sentindo-se mais perto de Lídia, o viúvo admite que perdeu o rumo, o que aparece, metaforicamente, no acidente com o carro.
            Enquanto o viúvo procura ansiosamente um sentido vital que se lhe escapa, sua obsessão volta-se para a ideia de limpeza, fato que é recorrente na narrativa. Não se trata, propriamente, de desejar a limpeza obsessivamente, mas antes de senti-la com intensidade desproporcional. É como se os objetivos se limpassem a si mesmos de maneira ostensiva.

         Duas ou três semanas depois, a casa entra em rotina. E se limpa, se asseia, se higieniza e até quer mostrar vaidade. Não há espelho que baste para a casa que rebrilha de tanto lustra-móvel, limpador de vidro, detergente e sapólios.[3]

            Se as coisas são personificadas, as pessoas, às vezes, aparecem quase que reificadas, como acontece numa menção à D. Benedita:

         D. Benedita não faz supermercado. Cada semana escreve garranchos que viram azeite, arroz e macarrão. As palavras na cabeça de D. Benedita também devem aparecer como garranchos. Difícil decifrar o que a mulher pensa, caso pense, porque a cabeça de D. Benedita deve ser como papel em branco.”[4]

           
A personificação da casa é seguida, em outro contexto, da animalização do narrador:

         Já pensei em mudar-me, mas nunca sairei desta casa. Ela é o bicho hospedeiro, sou o verme que dele se alimenta. Às vezes penso que fui feito para morar aqui. Não questão de destino, quando procurei desabava de velha e inabitável, fiz a casa tanto a meu gosto que desconfio que ela me atraiu para lhe dar a forma que me pediu.[5]

            Ao contrário de outras obras, principalmente a partir do século XX, cuja tônica é a expressão da falta de sentido com que a realidade se apresenta, mas numa imagem que nenhuma tem a acrescentar, aqui temos uma aguda, profundamente sentida, visão de tudo isso, mas numa criação expressiva que não se esgota na simples negação. É do “sem sentido” aparente do real que brota a mensagem mais forte da obra. Isto, desnecessário dizer, pela maneira como ela se organiza e se realiza numa linguagem “buscada” de profunda expressividade. É o contrário de outras obras que se passam por complexas, mas que, na verdade, pouco conseguem construir.

           

            Em primeiro lugar esta é uma obra de 2005, que reflete os males e as dores que marcam a literatura desde o século XX mais claramente (já que desde sempre existiram). A angústia traduz-se neste livro pela sensação de claustrofobia que parece atormentar o herói e que se transfere para o mundo que o cerca, como diz Salomão Sousa:

         Por tratar-se de personagem que padece das doenças da pós-modernidade, o viúvo não se limita a ser doente – ele adoece o mundo ao seu redor. A realidade perde as suas funções inanimadas, assumindo os desastres que ele mesmo vem construindo.[6]     

            Essa sensação é o que problematiza todas as relações humanas na obra. A visão aqui descrita pode ser claramente constatada ao longo do texto, como no que se segue:

         Estou na garagem, transformada em consultório. O consultório de vozes encarceradas. Ali sim estão as vozes em seu estado primitivo, porque saem, mas não saem, ficam ali, depositadas, aéreas, esparsas, presas para sempre no ouvido da doutora. A garagem é um ventre de vozes, estão amortecidas, esperam que nós a busquemos, há um repertório também de outras vozes, viciadas, lidas, eruditas, que a doutora recolhe do ar, borboletas rebeldes, que se cruzam formando outro bando de borboletas.[7]

            Se quisermos escolher uma passagem em que mais claramente aparecem as características aqui arroladas, podemos escolher o capítulo 6 na sua íntegra, onde há uma descrição da casa que exprime poderosamente a sensação de claustrofobia (nos quartos), sensação que não é transmitida pela cozinha, para onde convergem “luminosidade, amplitude e vida”[8] o que, normalmente se esperaria da sala. É na cozinha que ainda existe vida:

         (...) A vida vicejava na cozinha como planta adubada. As paredes porosas exalavam não apenas o cheiro forte dos temperos, exalava ela mesma cheio de existência, coisa viva, poderia suar ou gelar-se.[9]

            Enquanto isso “a sala acabrunhava-se numa soturnidade úmida” [10]
            A sensação de ser o herói alguém desconectado, fica afirmada com a menção ao telefone, como única forma de ligação com o mundo.
            A idéia de vazio a cercar o herói, é enfatizada quando são mencionados meios sonoros e visuais:

         Evitava o silêncio, pelo menos logo depois da morte de Lídia, mas a televisão e o telefone passavam a ser silêncios estentóricos.[11]

            O viúvo vive numa casa onde parece não existir nenhuma imagem, mas apenas penumbra. Num certo momento o herói tenta fugir até da presença semanal da criada, que faz o sol entrar na casa:

         O sol, contudo, teimava em se instalar uma vez por semana. Diabo de rotina. Era quando vinha D. Benedita.
                                                        /.../

         Não sabia em que cômodo ficar, escolhia o dia da semana em que teria de ausentar-me o dia inteiro, mas às vezes coincidíamos e eu me via acuado, incômodo em minha própria casa, quase pedia desculpas a D. Benedita por morar ali, ora que é isso, nhô sim, nhô não, outro tanto envergonhado de ela expor sem limite ou pudor a minha vida mais noturna e escondida.[12]

            Tudo isso se exprime numa linguagem própria que individualiza o romance, ao mesmo tempo em que o coloca numa tradição das grandes narrativas. Adelto Gonçalves exprime bem isto:

         O viúvo, de Ronaldo Costa Fernandes, é um romance surpreendente. As frases curtas, diretas, rápidas e cortantes reconstituem um clima pesado e sombrio (...), em que o estado mental de quem escreve transborda para a palavra.

                                            /.../

(...) É como se Machado de Assis tivesse renascido na segunda metade do século XX e, incorporando todas as conquista literárias das últimas décadas, renovando o idioma e produzido este texto que é o depoimento apurado de um homem atormentado.[13]

            Isto tudo é o que autoriza Adelto a classificar a obra como “uma das poucas obras-primas do romance brasileiro deste início de século XXI,”[14] uma obra que “revisita” os grandes fantasmas da modernidade e pós-modernidade, como acontece com Angústia de Graciliano Ramos, mencionada por Lídia Cadermotori na apresentação para O viúvo, e como se vê em O estrangeiro de Albert Camus.
            Salomão Sousa enfatiza ainda a qualidade da linguagem que marca a obra, junto à maestria com que coloca a relação entre personagem e realidade.
            Esta é uma obra que está a merecer mais fama e estudos críticos do que já recebeu, como se vê em Adelto Gonçalves.

         Que um país periférico não seja capaz de reconhecer os seus melhores autores, isso é sintoma de que a nação já entrou em acelerado processo de desintegração. E por isso seu futuro se desenha duvidoso. Infelizmente.[15]







[1] Ronaldo Costa Fernandes – O viúvo, LGE Editora, Brasília, 2005, p.36.
[2] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p. 95.
[3] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p. 115
[4] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p. 123.


[5] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.150.
[6] Salomão Sousa – Agulha – Revista de Cultura # 49, Fortaleza, São Paulo, janeiro de 2006, acessado em 20/28/2007.
[7] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.24.
[8] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.27.
[9] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.27.
[10] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.27.
[11] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.28.
[12] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.29.
[13] Adelto Gonçalves, O viúvo, um acontecimento literário, Jornal de Poesia, acessado em 20/08/2007, p.1.
[14] Adelto Gonçalves – O.C. p.1.
[15] Adelto Gonçalves – O.C. p.3.

Nenhum comentário:

Postar um comentário