quarta-feira, 17 de outubro de 2018

A nuca, conto RCF


 

Uma máquina de carne e osso não tem vaidade. Gestos mecânicos são o diabo. O espelho também tem algo de mecânico. Meu pensamento talvez seja mecânico: ideias não nascem assim de repente. Posso exercitar minha imaginação como se houvesse uma barra. Uma saída é sempre um músculo bem forjado que pode suportar um peso inesperado.
Se um dia não aparecer no trabalho, quando darão pela minha ausência? Costumo considerar as coisas em sua fluidez.
Não gosto de andar, não gosto de deslocamentos. Talvez minha vocação de imobilidade tenha nascido da minha capacidade, caso queira, de não pensar em nada. Dirão: não há como esvaziar a consciência.
O espelho, por exemplo, é que forma de deslocamento?
Meu corpo é desnecessário.
Moro perto do serviço. Ando alguns metros. Entro no edifício. Subo. Ao fim da tarde, o percurso inverso. Banho-me três vezes ao dia. Tenho aversão a tudo que se pega em mim. O terceiro banho não é de água: álcool. Esfrego o corpo com substâncias desinfetantes. Se algo apodrece é por dentro, onde não posso alcançar. A ideia de que algo está fora de meu controle me enlouquece.
Percebo certo constrangimento da imagem. Não o fazia por uma mágica qualquer que o eletrizava. Era independente de mim. Apenas punha-se lívido e decente em seu quadrado abandono.
    Só tenho dois horários: o acordado e quando durmo. Enquanto me movimento, alimento-me às horas mais extravagantes, ou não como; outras, fico desperto pela noite, insone, faço refeições pesadas; no trabalho, não sei se chove ou faz sol. Se me perguntarem de repente se meu rosto é redondo ou fino, demorarei a responder. Quando criança meu rosto era redondo; mais velho, afinou. Não sei definir meu rosto de hoje. Esta perda dos traços não me inquieta. Até mesmo me conforta. É como se o corpo fosse desnecessário e só trouxesse dano. Não há exagero nem gestos. Acompanho minhas mãos. Jamais faço gestos amplos, como abrir os braços, jamais gestos expansivos, agitados, nunca vi minhas mãos tremerem. Falo com os braços caídos. A vida não é para ser vivida de braços estendidos. Deus é um círculo. Não gosto de pensar em religião. Nem tenho religião. Se Deus existir deve ser liso como uma bola. Por que não inventaria outra forma para a Terra? Há momentos de nostalgia. Mas logo me controlo. Não sei se ainda tenho lágrima. Tenho nojo à lágrima. Subo e desço, subo e desço, meu movimento de ascensão e queda é mais constante – poderia dizer vertical – que minha vida plana.  Não tenho relógio. Meus chefes – ou meu chefe, já que perdi não a noção do tempo, mas a noção ordinária de hierarquia – não estão preocupados com o cartão de ponto. Querem o relatório. E o relatório, eu o entrego regularmente como defeco ou tenho sede. O relatório passou a ser orgânico, biológico, visceral, enfim, circular. Às vezes penso em mim sem pernas. De tanto ficar sentado, ela se anestesiam. A dormência toma todo corpo e logo não o tenho mais. Oh Deus, não tenho mais fibras, membros, dedos, nariz, extremidades, sou apenas abstração.
Nunca antes conheci carrapato. Agora os bichos me infectam pela noite. O que de mais íntimo tenho me trai. Não posso confiar em mim mesmo. Olho o bicho – será mesmo carrapato? Quem me disse que tenho, entre colchões, um carrapato? Não conheço ninguém que tenha carrapato que parece ser bicho antiquado. Mas as doenças retornam. As doenças vivem incubadas na medicina e no tempo. Se não é carrapato, o bicho que tenho pregado à minha pele, que protozoário vem a ser? Que espécie de bicho é carrapato?
Quem se importa, trancado no sótão, se estou barbeado ou com barba de três dias? Minha pele é feita de couro delicado. Penso em mim outra vez por dentro. Esta mesma delicadeza cobre meus órgãos? Esta mesma finura e sensibilidade da pele são o que constitui o exterior do meu interior?
Agora o desconhecido não me olha, retribuindo minha ausência.
Ao mesmo tempo, o desconhecido parece introduzir-se em outro recinto, como se saísse do banheiro. Não me vira o rosto. Sei que toma conta de mim, embora já não haja nem mesmo olhar de esguelha. A certeza de que está ali permanece comigo até no sótão, incomoda-me a ponto de não poder redigir os intermináveis relatórios que, sei, serão jogados no lixo. Esta é a rotina: produzir montanhas que são destruídas com o gesto inútil de terra arrasada. Por que então me pagam? Cheguei a pensar em não escrevê-los mais.
Certa vez, por doença, deixei de entregar os relatórios. Ao contrário do que pensava, reclamaram. Tenho de produzi-los, mesmo que não os leiam. Agora não posso escrever porque a imagem indiferente – ou melhor, fingindo indiferença –, a imagem do desconhecido me persegue. Que preço tenho? Valho o meu salário? Por que, nesta altura da vida, tenho que me inquietar com questiúnculas? Meu medo é o da perda. Já ando sem corpo. Às vezes sonho que minha cabeça bóia na água. Alguém me puxa pelos cabelos e não vem corpo algum.
Faz cinco anos que não tenho contato com o chefe – ou os chefes –, nem sei mesmo se continua o mesmo. Agora o desconhecido vira-se de costas. Posso livremente olhar-me ao espelho, porque só vejo sua nuca. O desconhecido no espelho sou eu. Mas, com a diferença que me vejo de costas. É um pescoço delgado. Cabelo crespo se acanha sob a base do crânio. Não tenho aversão ou horror à minha imagem de costas. Pelo contrário, não me sinto vigiado e, como disse, posso livremente olhar-me ao espelho, embora tudo o que tenha de mim seja apenas a nuca. Por que me vira as costas? Mesmo sem relógio, sei que estou atrasado. Há dias que preparo um longo relatório. O desconhecido tem a nuca despida, ou seja, não veste camisa, não lhe aperta o colarinho. Orgulho-me dos relatórios. Que horas devem ser no escritório? Pobre daquele que acredita que em dois lugares distintos na mesma cidade a hora é a mesma.

(do livro Manual de tortura. Brasília: Esquina da palavra, 2007)

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