terça-feira, 4 de setembro de 2018

Um homem é muito pouco 16


Resultado de imagem para mabel frances

Além disso, acreditava que os cavalos de madeira de Horácio eram originais, alguns verdadeiras esculturas realistas, outros, disformes, vibrantes obras de arte impressionistas, abstratas e até mesmo surreais. A série dos horses de Horácio em que ele esculpira os cavalos chineses da dinastia Ming, com todos os aparatos e enfeites de sela e de vestimenta para a guerra eram tão vigorosos como os cavalos de apoio para as touradas, com seus adereços coloridos, pratas, chapas no dorso, elmos estranhos e estapafúrdios. Assim os dois artistas, colocados à margem do meio artístico do Rio, se completavam se admirando e trocando ideias e, principalmente, elogios, o que os reconfortavam para seguir adiante.
Na volta, a necessidade de ver Yolanda mostrou a Toninho Marcos que ele ainda mantinha um dos comportamentos mentais que o levou à dra. Nise da Silveira: a obsessão. Ela era parafuso que nunca acabava de se enroscar na madeira. A obsessão era ar viciado. A obsessão de Toninho Marcos estava nas palhetas e nas telas que pintava nos últimos dias cujo tema era sempre Yolanda: uma Mona Yolanda Lisa, uma Yolanda picassiana onde os olhos estavam no lugar da boca e a boca no lugar das orelhas, uma Yolanda abstrata que só Toninho Marcos via ali Yolanda, uma Yolanda a la Andy Warhol e principalmente uma Yolanda que não estava em tela alguma mas aparecia na tela da memória e do sonho, que são telas móveis e dissolutas, que crescem de tamanho e diminuem sem que passe a dor.
            Que língua falavam ali na casa de Juliana? Clemente conhecia várias línguas. Em todas elas havia a palavra amor. Só que na língua de Yolanda não havia mais a palavra amor. Ora, língua que não tenha a palavra amor é língua mais devastadora que língua que não tenha a palavra água. Estavam na sala, era mês de julho. Chovia. Fazia um frio de Bremen no outono e Clemente temia o frio de Bremen no outono.


(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)

Nenhum comentário:

Postar um comentário