quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Meu pai tem seu calendário, poema RCF





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Meu pai tem o calendário do assombro muito bem escondido.
Os pulmões do meu pai
tragam o ar puro
que é o intervalo entre um maço e outro.
Meu pai me pergunta por que choro
se lágrimas são desperdícios
como os restos de unhas e pontas de cabelo.

Meu pai, no seu silêncio morto,
não pode acreditar que o filho
já tem a idade dos mortos.
Meu pai me pergunta se conheço
o silêncio e de quantas partes ele é feito.
O silêncio se divide, grosso modo,
em silêncio surdo e silêncio mudo.
Quando chega a manhã
meus olhos orvalham.

Minha única opulência é a lembrança
que a cada dia incha, inflama e
abarrota, mesmo que a memória
seja a borda do universo
que se expande sobre o escuro do nada.

Amanhã direi ao meu pai
que não apareça de terno.
Falam sempre que os mortos
são frios e indiferentes
– nenhum morto meu sua
mais em meu pensamento
que o terno de lã do meu pai,
ao meio-dia de uma recordação,
no verão mais severo da morte.

Dizem que os mortos se congelam
porque não podem mais desfazer
as antigas atitudes e ações,
mas meu pai a cada dia
é um morto diferente:
hoje aparece exato como uma agulha
há um mês veio estouvado,
apressado e ruidoso
como se a lembrança
tivesse porcas e rangesse
a máquina da memória.





(Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)


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