sábado, 17 de novembro de 2018

Um homem é muito pouco 21





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                    O esconderijo maior a gente traz com a gente. Me escondo quando durmo. Mas aí vem o rosto do meu pai deformado e quer falar e não consegue. O rosto do meu pai não tem boca. Eu deveria ter nascido sem boca. Andaria por aí sem boca e as pessoas estranhariam uma pessoa sem boca. Mas em momento algum iria dizer que eu as denunciei ou que posso denunciar. Depois não sei se o que faço é me esconder. Um apartamento na Barata Ribeiro, num cabeça de porco, não serve de esconderijo para ninguém. Aqui até mesmo tem tráfico de drogas. É um entra e sai miserável. O que entra, entra com olheiras, cabeça baixa de condenado, e olhando para o lado. Tem gente que consome lá dentro. E o que sai então é um sujeito ou uma mulher com a cabeça em pé, o nariz absorto, a boca desafiadora, as mãos impertinentes. Qualquer cliente, quem sabe, do traficante, o Dezinho, pode me denunciar.
                 A gente não sabe quem são as pessoas no mundo. Você anda na rua e na rua estão pessoas boas e criminosos. É só andar pela Nossa Senhora de Copacabana. Aquele velhinho ali matou a mulher, pagou três anos de cadeia, matou a segunda mulher, pagou mais sete anos de cadeia e agora está comprando remédio na farmácia. Um senhor pacato, que gosta de prosa, fala de bocha e da cidade natal no interior do Rio. Aquela outra passou metade da vida na cadeia e a outra metade na cadeia por causa do bandido que namora. Ela mesma já passou na faca dois turistas alemães. E parece freira. Freira que gosta de degolar. Àquele outro deram liberdade provisória, matou a mulher e enterrou ela ainda viva. Também parece cidadão pacato. Os assassinos são pacatos. O animal que trazem dentro deles dorme quando eles andam na rua. E tem gente que se vê na rua, pensa que é bandido e não passa de um desajustado que brigou com a família porque não o deixaram jogar videogame até madrugada.













(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)










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