domingo, 14 de maio de 2017

A carne de René, Virgilio Piñera

O prazer da dor





O corpo é uma fonte de prazer ou uma caixa de tortura? Não podemos fugir ao nosso destino de carne odiosa? Há duas vidas paralelas, uma que se supõe seja a realidade e outra em que seres estranhos e sádicos vivenciam uma paródia da nossa vida? Talvez o leitor não encontre a resposta em A carne de René, de Virgilio Piñera (Ed. Arx), mas certamente estas e outras questões inquietarão os mais lúcidos.
Publicado em 1952, A carne de René conta a história de um jovem educado no seio de sua família e que, ao completar vinte anos, é escolhido para suceder seu pai, líder de uma grande conspiração. Daí em diante, René ingressa num mundo de perversidade e adoração à carne. O mundo com que passa a interagir é cruel, onde personagens sádicos, numa atmosfera de pesadelo, torturam e são torturados. O clima de delírio e violência é completo. O único contraponto é René, personagem que luta contra a grande desordem universal.
Virgilio Piñera, nascido em Cuba, migrou para a Argentina, antes da revolução cubana. São seus contemporâneos Lezama Lima e Alejo Carpentier (em Cuba); Ernesto Sábato e Jorge Luís Borges (na Argentina). Poeta, dramaturgo, contista, Piñera alcança com A carne de René uma fatura exemplar. Não me recordo nada que se assemelhe a ele na literatura de língua espanhola de sua época.
O romance é uma história linear e exaltada do personagem René em sua iniciação ao corpo sacrificado. Virgilio Piñera não envereda por considerações históricas ou digressões eruditas. Mas não se pode negar que a aventura de René para fugir aos adoradores da carne se insere na categoria da exaltação do Corpo martirizado. E, neste sentido, podemos interpretar de várias formas, entre elas a leitura do martírio como uma política do corpo. A história da humanidade pode ser resumida na história do corpo sacrificado. É só pensar em Cristo, na Inquisição, na Revolução Francesa (a guilhotina seria o ato simbólico de separar cabeça e corpo?) e por fim o corpo da tortura política do século XX.
As referências não são gratuitas. Cristo mesmo é citado não como aquele que morreu na cruz para nos salvar, mas pelo prazer do sacrifício do corpo, a morte pela carne. A “escola” para onde René é levado para que seja iniciado na aprendizagem da dor mais se assemelha a um educandário de ensino religioso. A seita que o pai de René é um dos líderes se aproxima da formação dos partidos com vocação totalitária e dedicação extremada à causa. Mas a leitura de A carne de René coloca outros problemas além (o que já é muito) da narrativa alegórica.
A questão do duplo que se apresenta no texto também é singular. O duplo, desde que modernamente conhecemos na expressão do conto "William Wilson", de Edgar Alan Poe, geralmente se apresenta como uma duplicação da personalidade invertida (polo negativo, polo positivo) embora com o mesmo surpreendente corpo. Não é nomeado de duplo. Há apenas a sugestão, óbvia mas sugestão, para o leitor. O mesmo acontece com os duplos contemporâneos de Piñera. O duplo em Borges, por exemplo, é uma inquietação metafísica. Uma metáfora do desconforto intelectual num mundo restritivo que faz com que o narrador se refugie no universo de virtualidades que é o universo dos livros inexistentes, das bibliotecas extraordinárias e de jardins existenciais que se bifurcam. O duplo em Piñera é descarado ( o mesmo duplo que José Saramago utilizou como tema em O homem duplicado ). Todos têm um duplo, assim nomeados. Desta maneira, Piñera gera uma ironia narrativa que não está no texto, mas no contexto de sua contemporaneidade. Está no uso e abuso do tema.
O realismo mágico para mim pertence à categoria do “re-encantamento do mundo” ( Michael Löwy ). Não que este mundo seja elevado ou sublimado a um estado lírico ou poético. O “re-encantamento do mundo”, como acontece com o surrealismo de Breton, é o signo transgressor do sonho, de uma acusação do mundo realista e burguês, medíocre, opressivo, temeroso do inconsciente. A carne de René, entre tantas outras leituras, acaba nos levando a encará-lo como um livro de denúncia, onde o estado e a sociedade aceitam o pacto da violência.

imagem retirada da internet: crucifiction

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