terça-feira, 5 de setembro de 2017

Um estudo de linguagem e referencias na obra de Ronaldo Costa Fernandes


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Bruno Ramos


O autor, oferecendo elementos para uma análise do comportamento do personagem Calunga, como em outras narrativas, tem perspectiva multidisciplinar e constrói a partir dela uma base de signos psicanalíticos pela qual denuncia os rigores da vida urbana e as contingencias do que migra para os grandes centros. Para delinear os conflitos de Calunga serve-se da música clássica erudita e do boxe, conteúdos que vão justificar o seu caráter dual. Há, em Calunga, sobretudo, a evidencia de certo neonaturalismo, e a marca constante da fatalidade. Além dessas características, a obra acusa a preferência do autor pelo inusitado, diferente, estranho e não convencional.

“A imaginação, ora. Incendeia quando deve esfriar e não se conforma com um circulo na casa dos quadrados”. (A Peripécia)

Exigindo, apesar da simplicidade do discurso, um olhar interdisciplinar para atender a complexidade de Calunga e seu drama interior, a obra ganha excelência, confirmando a genialidade do escritor. Esse, com aptidão, trata da tipologia do excluído, do que vive a margem ou fora dos padrões convencionais da sociedade.

Em outro trecho da obra, Calunga é situado num contexto de realismo e criticidade descrito com detalhes que dimensionam a experiência do indivíduo determinado pelo seu ambiente e hereditariedade.

“Também sou nordestino. O nordestino não emigra. O nordestino é eterno retirante. A seca, mesmo que o bicho seja do litoral, está entranhada na alma. Não tem gente apátrida? O nordestino, como eu, é sem-estado. Nem lá nem cá. Um ser que migra pro limbo. Porra, pro limbo.”

Poderíamos lançar a pergunta: o que esconde o signo "gordura" nessa obra? O que esse elemento provoca no personagem e que ele quer reprimir? A repulsa e relaxamento dos músculos que o signo causa ao personagem não diria algo revelador sobre sua inquietação? O que está ai insinuado nas entrelinhas do texto? O uso dessa metáfora e dos aspectos sinestésicos que a acompanham (figuras de linguagem) não estariam ai para configurar um conteúdo sexual, instintivo, abrangendo temas comuns do naturalismo como a homossexualidade, o incesto, o desequilíbrio e a loucura?

“– Sonho que o azeite, o óleo, a fritura, tudo isso chegue, fisicamente, lá dentro de mim e amoleça os músculos.”

Como na sua poética, precisamos depreender a carga semântica das palavras e retirar aos poucos a máscara (persona) de Calunga imposta pela vivencias sociais e certo racionalismo do discurso para ver o que denuncia nas entrelinhas. Assim, na (poesia) como na prosa, o uso de metáforas sustentam teses do personagem ou eu lirico.

“Penso em mim como aquele saco.”

O rico material para análise que o protagonista produz diz da especialidade do autor em descortinar e dissecar conteúdos humanos com minúcia machadiana. Porém se esse está para o realismo e engendra no campo do comportamento, Ronaldo mais ao neonaturalismo, aprofunda a pesquisa no âmbito científico da psicanálise, com conteúdos centrados numa provável patologia que dá distinção a seus personagens e, sobremaneira, em Calunga. Assim, desce ao abismo das relações instintivas, das taras, do medo, da ira e da morbidez para justificar ações e palavras do personagem.

Sua sintaxe merece estudo aprofundado. No conto, digo na prosa contemporânea, em que se exige mais objetividade e se quer garantir excelência ao gênero como o fizeram Machado e Duílio Gomes, Ronaldo desafia as convenções e faz uso de conotação, metáforas e outras figuras de linguagem, trazendo as influencias de sua poética, - essa também muito rica em criticidade -, porém não destoa do tom objetivo, cientifico e social da obra. Sem dúvidas, o seu transito pelos gêneros o tornaram um “exper” na arte de escrever.

Ao leitor, sugere a vida do ser em abandono. Constrói para isso metáfora, metonímias, comparações e diversas interdisciplinaridades para que nelas o seu personagem venha refletir sua essências. São nesses elementos da sintaxe do autor que revelam sua genialidade.

“Uma luta de doze assaltos, de peso-pesado, é uma ópera”
“...três assaltos com protetor na cabeça, uma ária.”
“...Mas gosto não é ouriço ou porco espinho: os gostos são animais domésticos.”
“A memória tem um punho vigoroso, mas às vezes soca o vazio.”
“Nada pior que alcançar o queixo do nada.”
“Penso em mim como aquele saco.”

A escolha por esses personagens desajustados, a preferência pelo anti-herói denotam certo niilismo por apresentar as misérias humanas em todos os níveis, físico, psicológico e psicanalítico. Calunga, por isso, vive de exclusões e do fracasso emocional e tem acusados nas entrelinhas os desastres da relação familiar e os desvarios da autocondenação e da culpa. O autor que nos exige, desse modo, uma leitura no nível das significações e lá esconde razões de toda a fragilidade e contingencias que tornam mais verossímil.

Se há um questionamento a ser feito é da própria condição humana. O autor não fica na superficialidade-máscara; antes, o seu conto trata da interioridade para revelar as dicotomias do ser através de sentimentos, culpas e confrontos com seu inconsciente:

“Toda vez que treino e bato no saco, penso que estou batendo em mim mesmo.”

Ler Ronaldo é, sem dúvida alguma, ler um clássico.


(imagem retirada da internet: nastaja fourie)





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