sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Um homem é muito pouco 40


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           O edifício era tortuoso, mas não lembrava labirinto; era pleno de apartamentos minúsculos,  mas não sugeria colmeia. Era baixo, sem necessariamente ter poucos inquilinos: formava um longo ele, onde os apartamentos de fundos podiam ter a visão da entrada. O edifício ficava na Barão da Torre. Sob os pilotis, criou-se a confusa garagem onde um carro tinha que sair para outro entrar. Berta e José davam festas para gente do Cinema Novo. Nunca vi cineasta importante na casa deles, apenas atrizes iniciantes com cara de drogadas, meninas ingênuas e pálidas enrolando os erres ou starlets que faziam ponta e se acreditavam diva. Havia dois atores menores que frequentavam a casa de Berta, a gorda, e de José, o que mancava. Os dois atores apareciam tanto em cinema brasileiro quanto o José Lewgoy. Vi-os em Macunaíma, vi-os em filmes urbanos de cineastas com narrativa fragmentária, vozes em off, câmara tremida.

            Eram péssimos atores. Berta, a gorda Berta, nunca lera nada até o fim, mas gostava de comentar livros que não leu. Carregava memória do cão e retentiva de dar inveja a concorrentes de O céu é o limite. Os apartamentos eram quase todos de quarto e sala. Eu morava num quarto e sala. Os apartamentos de frente eram maiores, de três quartos. O edifício tinha quatro andares, logo havia apenas quatro apartamentos de três quartos em todo o prédio. Embora José fosse alto funcionário do Instituto do Açúcar e de Álcool, morava naquele apartamento apertado porque era perto da mãe de Berta, uma velha judia que vendia joias e tinha sofrido o diabo na Segunda Guerra. Não vale a pena contar a história da velha Sara com o campo de concentração, a fuga polonesa e a descida intempestiva no cais da Praça Mauá, interrompendo a viagem até a Argentina, seu destino final. Durante o trajeto, muitos comentavam que na primeira classe viajavam famílias nazistas em viagem de férias à Argentina. Ela não ia sair de um inferno de arame farpado para viver um inferno a céu aberto. Engravidou de um sujeito gordo, sujo e que fedia a carne de porco. Era um judeu que odiava os judeus e se transformara num açougueiro. E como açougueiro delatara vários judeus. Teve de fugir da Alemanha.

            Sara deu à luz a uma menina saudável, mas que crescia enormemente e comia feito adulto. Aos seis anos tinha estatura de adolescente e gordura descomunal. Ela mandara reforçar a cama de Berta. Foi a primeira das camas de Berta que tinham sido mandadas fazer com reforço, além do peso ela passava uma noite agitada que aumentava o volume das carnes e a pressão sobre as molas. Vinham-lhe pesadelos terríveis. Num deles ela se afogava. Gritava e se debatia e quando percebia nenhuma água a sufocava. A piscina dava pé e o sufocamento era consequência das enormes cordas vocais que lhe entupiam a garganta. Por isso também o apelo de socorro não era escutado. Ela acordava chorando e a mãe lhe cantava cantigas de ninar em iídiche, pois eram as únicas cantigas de ninar que conhecia. Berta tentou ir ao colégio, chegou a ser alfabetizada, aprendeu as quatro operações e se deu por satisfeita.


(do romance Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Flores do mal, Charles Baudelaire (RCF)


                                                               

   


(do livro A cidade na literatura e outros ensaios, 2016)



1857 foi um ano fundamental para a literatura mundial. Nesse ano, dois autores franceses publicavam seus livros. Um de prosa, intitulado Madame Bovary, de Flaubert. Outro, de autoria de Charles Baudelaire, iria mudar a poesia com sua visão maldita do mundo. Era o livro As Flores do Mal. Ambos sofreram processo na justiça. O primeiro por açular a permissividade erótica e o segundo por tratar de temas renegados pela sociedade como, no dizer do crítico francês da época de Baudelaire, F. Dulamon, “o vício frívolo do indivíduo, a corrupção dogmática das sociedades, almas cúpidas que fraudam e caluniam”. Os incestos, lesbianismo, o lado do mais decadente e escondido da sociedade está nas páginas de Baudelaire.

            Flaubert se defendeu com a tese de que não usava nenhum exemplo vivo e da realidade e que Madame Bovary era ele. Ao “incriminar-se”, Flaubert fugia da acusação de denegrir alguém do mundo real ou fazer apologia do adultério com sua visão indulgente e não condenatória. Baudelaire usou a tese de que não aprovava ou desaprovava o que descrevia como “desvio” social. Ele apenas apresentava o que de mal havia na sociedade, mas (argumento desnecessário para a literatura, embora importante para a justiça que não trata de literatura) sua poesia, como conclusão, apontava para um elemento mais puro e não corrompido pelos homens.

            É um pouco constrangedor para os amantes de Baudelaire ver o poeta angustiado e tenso para provar sua inocência. Para alcançar tal fim, ele precisava pousar de homem digno de pertencer à sociedade parisiense, ser um cidadão normal e estar em sua plenitude intelectual e moral. Baudelaire não tinha que prestar contas a ninguém, se seu livro não tivesse ido parar nas mãos e olhos errados. E muito menos seus defensores teriam que argumentar com uma imparcialidade moral do poeta. O poeta apenas registra e não coaduna, não endossa, não aceita o mal que está na sociedade.

            Baudelaire parece ter tido outro problema de ordem literária e humana. Como bem observou Theophile Guatier, o poeta de As flores do mal realmente admirava seus antecessores. Dedicou dois poemas para Victor Hugo, que reconheceu não entender bem a estética de Baudelaire, agradeceu a reverência e recomendou coragem ao poeta diante das adversidades. Hugo e Gauthier, principalmente este último, a quem Baudelaire amava como literato e ser humano, entenderam em parte a nova proposta estética daquele poeta que, curiosamente, não era tão maldito em sua vida social como parecia e que deseja ser aceito na sociedade dos poetas vivos de sua época. Mas Guatiher entreviu muito lucidamente dois movimentos muito comuns na história da literatura. Gauthier percebeu que a nova estética de Baudelaire diminuía seu poder romântico e que apontava para um novo rumo estético, embora ainda preso às convencionais regras do soneto, das rimas e de outras formas fixas.

            Não, Baudelaire não era Rimbaud que mandou tudo às favas. Lucidamente, escreveu sobre paraísos artificiais, mas os condenou, quis entrar para a Academia Francesa, frequentava salões, era um dândi e não um camponês com roupas rústicas, grandalhão, calça pescando siri e sapato grande e usado quando se apresentou na casa da família de Verlaine.

            O curioso é que tanto Madame Bovary e As flores do mal foram publicadas em periódicos. Madame Bovary, em 1856, como folhetim. Causou desconforto, mas não processo penal. As flores do mal também apareceu na imprensa, não o livro inteiro, mas partes dele. A Revue de Paris, a Revue des deux mondes, L’artiste, a Revue française publicaram vários poemas do que viria a ser o livro maldito. Nada disso os levou a corte, a não ser quando enfeixados em livro.

            O livro, já dissemos em O narrador do romance, tem o caráter de documento, mesmo o livro de ficção, mesmo o livro de poesia. A “mentira com sabor de verdade”, impresso em letra de fôrma, é um documento mais impactante do que versos soltos ou páginas avulsas. O primeiro crime de Baudelaire – e de Flaubert – foi publicar em livro as divagações satânicas de um e os devaneios eróticos de outro.

            Um dos seus críticos contemporâneos escreveu longo artigo em que defende Baudelaire com o argumento avant la lettre  do artifício literário da despersonalização que, mais tarde, será teorizada por T.S.Eliot. Jules Barbey D’Aurevilly dirá que


“Baudelaire é um artista de vontade, de reflexão e de combinação antes de tudo.[...] Portanto, como o velho Goethe, que se transformou em turco vendedor de pastilhas em seu Divã, e nos deu assim um livro de poesia, o autor das Flores do Mal se fez celerado, blasfemador, ímpio, pelo pensamento, absolutamente como Goethe se fez turco.”


               Mas eu diria que Baudelaire foi julgado também pela sua proposta estética. Simples, assim. É claro que o juiz da época nem tinha consciência de que estava julgando também um fato estético. Por princípio e hábito, o juiz teria a obrigação de cuidar dos bons costumes e afastar aqueles que porventura pudessem desvirtuar a conduta social. Contudo, a justiça ali, como no caso de Flaubert, se incomodava – e profundamente – não apenas com o que foi dito, mas como foi dito. Incomodava a Nova Forma (embora o próprio D’Aurevilly tenha aproximado o verso baudelairiano do verso de Victor Hugo). Perturbava a ordem também o fato de o que foi apresentado ter sido apresentado dentro de um romance não convencional e dentro de um livro de poemas que ousava introduzir não apenas novos temas das torpezas humanas, mas também com uma linguagem desabrida e contundente e, embora em formas fixas ditas convencionais, com um gosto de um verso atravessado, carnal e vil.




O ônibus do corpo, poema RCF




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Todos os órgãos
trazem um cronômetro.
Alguns são apenas passageiros
conduzidos pelo ônibus do corpo.
Eles também têm sua rota,
suas paradas, sua quilometragem.
A pior tormenta
é aquela dos nervos:
a árvore da certeza desaba,
o rádio dos pensamentos emudece,
o quarto das emoções destelhado.
O nascimento é um minuto
de gozo dos pais.
Um jorrar de vida,
um frêmito líquido.
Viver, contudo, não é gozo,
mas, sim, descuido, frêmito seco,
o ciclo se fecha: o escuro pare o ponto final.

(do livro Memória dos porcos. 2012)