quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Don Juan (narrado por ele mesmo), Peter Handke (RCF)


UM LIVRO DE BOM GOSTO













            A primeira vez em que Don Juan aparece é na peça espanhola de Tirso de Molina, no século XVII, segundo Ian Watt. Assim como Madame Bovary e Dom Quixote, Don Juan é um arquétipo cujo público se identificou de tal forma que o comportamento desse tipo de personagem produziu até mesmo os adjetivos derivados deles como bovarismo (menos comum e mais erudito), donjuanismo e quixotesco. A força do personagem – e seu arquétipo – seduziu autores de várias estirpes, como Molière, Kierkegaard, Ortega y Gasset e Camus, isso sem contar as versões em outras expressões artísticas e culturais.

            Aqui, Don Juan aparece de surpresa para um sujeito retirado, cansado de leituras, que vive num semi-exílio em Port-Royal. A narrativa de Peter Handke pertence à categoria dos relatos acrônicos, ou seja, a mistura de épocas e personagens que não poderiam se encontrar, pois vivem em tempos diversos. O Don Juan que aparece para seu anfitrião, exímio cozinheiro, é o verdadeiro Don Juan que vence o tempo. A acronia vem cada vez mais freqüentando a literatura, já que é um tipo de fantástico suavizado e curioso.

            O tempo em que se passa o romance é o atual, mas o Don Juan é o mesmo personagem mulherengo que se conhece. Misturam-se atitudes nobres e sofisticadas de Don Juan e máquinas, aviões e motos. O cerne do romance está na narração de Don Juan de suas aventuras. Embora o título seja Don Juan, com o subtítulo “Narrado por ele mesmo”, o romance tem na figura de um cozinheiro o seu narrador. Diferente dos outros Don Juans (inclusive o primitivo, o do dramaturgo Tirso de Molina, um Don Juan mais atrapalhado que propriamente um conquistador inveterado), este Don Juan carrega consigo a morte do filho. O luto empalidece um pouco a figura fogosa e aventureira que a imaginação popular consagrou. Don Juan aqui é Don Juan: em sete dias narra a história de aventuras com sete mulheres diferentes em sete diversos lugares.

            Don Juan (narrado por ele mesmo), da Editora Estação Liberdade, é de autoria de Peter Handke, austríaco nascido em 1942. Handke é dramaturgo, romancista, roteirista de cinema e ensaísta. Entre suas obras, vale destacar a parceria com Wim Wenders, como roteirista, no filme Asas do desejo. Handke trabalha com um personagem absolutamente sedutor, mas sua narrativa não tem igual grau de sedução.

            Peter Handke, contudo, consegue manter a narrativa de forma segura e, até certo ponto, envolvente. Não há grandes aventuras, nem muito menos peripécias eróticas. O que existe de sobra é um fascínio do narrador em assinalar o encanto da narração. É pela narração que Don Juan conquista as mulheres e é através do ato de narrar que nós tomamos conhecimento dos atos de Don Juan. É a mesma estratégia de Casanova. O que existe aqui é palavra e, como nas Mil e uma noites, o poder da palavra para dar realidade a fatos que desconhecemos se realmente existiram ou não.

            O fato de o narrador ser cozinheiro também pertence ao campo da narração, ou seja, narrar é como cozinhar. Misturam-se vários ingredientes e temos um sabor, um prato, um degustar. “Eu cozinhava e Don Juan narrava”, escreve o narrador.  Todos os Don Juans são variantes de um mesmo Don Juan. O personagem é um personagem, fruto da imaginação e da palavra. Levado a outras expressões artísticas, não apenas agora, mas desde que surgiu como lenda, somos levados a crer que não existe apenas um personagem verdadeiro. Todos os Don Juans pertencem ao imaginário coletivo e, logo, todos são verdadeiros, como, aliás, é a teoria do mito do ponto de vista antropológico. “Durante os sete dias no jardim da minha casa, entraram em cena outros e mais outros Don Juans: nos programas noturnos de televisão, na ópera, no teatro, bem como em carne e osso, na chamada realidade primária. Só que, pelo que meu Don Juan contou sobre si mesmo, finalmente entendi: todos os outros eram falsos Don Juans – inclusive o de Molière; e também o de Mozart.”        

            O leitor encontrará aqui uma história interessante. Peter Handke tem o domínio da narrativa, bom ponto de vista do narrador-cozinheiro e uma trama suave e delicada, que certamente agradará aos que sabem degustar um bom prato ou um bom livro.




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