sexta-feira, 8 de março de 2019

A peripécia, conto de Ronaldo Costa Fernandes


Vamos, imagine, um padre de batina na fila de uma boate de striptease. Uma geladeira no meio da sala. Um fogão no banheiro. Vamos, imagine. A imaginação tem dois defeitos. A imaginação tem vários defeitos. Mas dois me incomodam, só dois. A imaginação, ora. Incendeia quando deve esfriar e não se conforma com um círculo na casa dos quadrados.
Era como me sentia ao dizer que era professor de grego. Grego. É muito difícil sobreviver hoje em dia com uma língua que não está nos currículos escolares. Só o alfabeto, alfa, gama, sigma, só o alfabeto já reprovaria metade da turma. Falam tanto em mundo virtual e essas coisas e tal. O barato hoje é ser virtual. O grego é virtual. Uma língua que não existe mais é virtual. Existe apenas nos livros e na mente das pessoas. Nada mais virtual que o grego.
Os colégios expulsaram o grego como quem afasta mau-olhado. Nas reuniões, festinhas, mesas de bar, quando você fala que é professor de grego, as pessoas o olham como se tivesse revelando uma tara. Minha tendência é beber mais um copo de cerveja, olhar o relógio, desculpar-me. Ora, desculpem, mas estou atrasado. E nunca mais voltar a ver quem me acha esquisito. Atrasado, desculpem. O relógio. Não vou conviver com quem me acha esquisito.
Tenho parte de culpa por não ter virado professor universitário. É, universitário. Mas minha experiência com a academia foi desastrosa. O erro é meu. O erro não é do grego. O grego não tem erro. O grego é uma língua e uma língua não é errada por existir. Ou por ter existido. Morrer é um equívoco. Mas acontece que não consigo conviver com intriga, vaidade, gente medíocre e, principalmente, com alunos desinteressados que perguntam a todo o momento a serventia do grego no mundo moderno. Oh, Deus, pra que serve o grego no mundo moderno? Sem resposta – é, sem resposta.
Passei a dar aula particular. Sou baixo, ando de terno sem gravata – um terno surrado que me faz suar, afasta as mulheres, dá asco nos homens. O terno. Ou o paletó. O paletó me torna mais civil. E me protege. Eu, que tenho bunda larga e gorda. O paletó me cobre a bunda larga e gorda. Há algo de couraça no algodão. Se ando de manga de camisa, tanto que estou desacostumado, que me sinto nu. É muito inconveniente você andar nu pelas ruas. Nu na casa dos outros. Entrar nu em fila de banco. Sei que cheiro mal. Mas gosto de mim desta maneira. Não, não, não falo do odor. Falo da maneira sem compromisso com a vida social. O paletó me cobre a bunda larga e gorda, cobre.
Gosto de pensar em mim como um ser em extinção. Um mico leão dourado, olhos pequenos espantados, gestos rápidos e ladinos.
– Você é um cara antigo – dizia um aluno. – Um cara que devia ter vivido antes de Cristo.
Quando nasci? 50 a.C. Antes de Cristo era uma hipótese de Deus sem carne. Eh, bem.
O sujeito tem que revolver a memória. Revolvendo minha memória, talvez eu já tenha nascido antigo. Morei em orfanato. Morar em orfanato é ser inquilino do diabo. O endereço, inferno. Lá, a gente aprende duas artes: a de sobreviver e a de viver desterrado.
Fui o que sou hoje: criança triste e desconfiada. Nunca mudei. Por isso digo que já nasci velho. Criança não é projeto de adulto. Não é miniatura de gente. Criança é espécie de raça. A raça negra, amarela, branca caucasiana e, por fim, a criança. Um dia já fui da raça das crianças. Magrelo, feio, cheio de feridas, lendo pelos cantos O Cruzeiro, revista de contos policiais, nunca gostei de gibi. Quando deixei a raça criança, fui ser de outra raça mais mofina ainda. Mas aí, ora aí, aí eu já sabia outras línguas, tinha outro corpo, outras mãos, os pés me levavam aonde queria. Cresceu meu membro que, depois descobri, ao morar com uma viúva velha de um parente afastado, me transformou em homem.
Sempre sobrevivi aos trancos e barrancos. Morei numa quitinete no Méier, cercado de livros, em sua maioria, é claro, em grego. Uma pequena fortuna. Houve mês que deixei de comer para comprar livro. Hoje não faço mais estas extravagâncias. Um mês comendo miojo, um mês.
Vivi assim até o dia em que um incêndio tirou meu ganha-pão. Todo incêndio faz desgraceira danada. Queima documento, queima móvel, queima coisas queridas, queima coisa cara. Nunca vi incêndio doméstico que não roubasse a paz de um cristão. No meu caso, tenho o nervo como a coisa mais inflamável dentro de mim. Este incêndio queimou principalmente meus nervos.
O incêndio levou os livros e meus dois alunos. Não, não, claro que o incêndio não matou os dois alunos, os frades capuchos que tinha, não, o incêndio queimou minha vontade de ensinar.
Fui então trabalhar como balconista – longe dos livros, longe de qualquer coisa que me lembrasse os livros. Era loja de bricabraque, numa rua sem saída, do centro da cidade, cercada por lojas de carcamanos que vendiam roupas baratas, utensílios de cozinha, cutelaria, chapelaria, todas ordinárias, as mercadorias cheias de pó, antiquadas como seus donos septuagenários, um gueto de libaneses com barba por fazer, cabelo ralo em pé, curvados, vidros embaçados das vitrines e as moscas visitando as lojas como nos velórios.
Jantava às vezes no botequim que misturava ovos coloridos com esfirras. Andava calado e, quando falava, falava grego com os clientes. Nem grego era. Digo que falava grego porque dizia coisas sem nexo, resmungava, falava sozinho, discorria sobre as peças de Sófocles e o teatro grego pro rapazinho da lanchonete que, para outro cliente, girava o dedo à altura da orelha. O riso dos outros é uma comédia e a comédia, vocês sabem, Aristóteles não tinha em boa conta a comédia. Que riam, os cretinos.
Fui mandado embora. Já não tenho mais nada o que vender para sobreviver. Depois do incêndio sobrou pouca coisa: minha língua inútil, meu cansaço dos anos. Um homem deve orgulhar-se de sua diferença, língua estranha ou estrangeira – o que dá no mesmo – e sua enorme capacidade de ocupar um espaço na natureza. Por isso, renego a cremação. A cremação é um ato indigno, recolhe da natureza algo que ainda existe. Os ossos ainda são parte da natureza, embora sua existência seja tão sensível como uma pedra.
Procurei os padres capuchos. Um estava no Rio Grande do Sul, outro voltara para a Itália. O certo é que estavam doentes, tomados por doença rara, falavam grego, sim, falavam grego, para espanto dos seus pares e do superior. Não creio que tenham enlouquecido. Queriam um mundo helênico para suas vidas, apenas. Que mal há de querer a convivência com Aristóteles, Sócrates e Ésquilo?
De qualquer maneira não poderia mais ter um trabalho ordinário. Estava ficando cego. Fui ao médico. De nada adiantou. Como iria ganhar a vida? O destino, que tem buraco no muro de beco sem saída, outra vez me pôs em caminho sinuoso.
Chego ao fim da minha peripécia, se posso chamar de peripécia. Fui até o subúrbio, busquei o número anotado no verso do cupom de loteria. A moça me abriu a porta, perguntei se era ali que tinham posto anúncio pedindo professor de grego. Ela me levou até o quarto escuro, onde jazia o homem. Seu último desejo: aprender grego e depois morrer. Foi o velho mesmo que propôs que eu fosse morar com eles. O senhor tem onde morar? Não? Aceite o meu convite, disse o velho. Mudei-me para a casa do subúrbio.
A menina gostava de hip hop, reggae baile funk fumaça crack a pedra andava de moto estudava no noturno do supletivo, Quer saber, dizia, não estou nem aí. Acabou acordando num hospital público emergência o tênis sujo de sangue, a calça de cós baixo tinha virado bermuda e a escuridão tomava os olhos e tudo por causa do tiroteio e de uma bala encontrada (não perdida) uma bala alojada no cérebro que não afetou nada além do nervo ótico.
Os objetos são negros, a experiência é negra e, logo, o mundo é negro. Ensinei-lhe o elementar do grego. Os pássaros riscavam o cinza dos dias chuvosos que têm tom grave.
Um homem deve ser senhor do seu último desejo. Um professor de grego como eu só tem um único desejo: a mocinha cega. Tenho que aprender a viver com poucos recursos e meus últimos desejos. Por que, tardiamente, os testículos vêm me atormentar como se o pesadelo não estivesse na cabeça, mas entre as pernas?
Com o tempo, o velho morreu. O enterro foi uma tristeza. Só havia a neta, mais dois parentes (um dos quais bêbado), e eu. Cega, a mocinha pediu que eu ficasse na casa, ajudasse no supermercado. Aos poucos os objetos vão perdendo contorno, mesmo onde há luz existe penumbra. Não me importa ficar cego. O silêncio é escuro. O silêncio. O grego já não me serve para ver nada. Olho difusamente a mocinha trocar de roupa. Aquilo me enoja. Sinto-me covarde e canalha. Logo a escuridão vai ser minha nova língua. Sem ver a mocinha, perco os testículos e ganho a escuridão. A escuridão é silenciosa. A solidão é língua morta.


(do livro de contos Manual de Tortura, Ed. Esquina da Palavra, 2007)



imagem retirada da internet: lucian freud

quarta-feira, 6 de março de 2019

O tempo, poema RCF




O tempo e sua matéria
a máquina dos meus humores
tão rica e mineral
enquanto lá fora
a sonata dos desatinos
orquestra o boi que se estende no varal.

O tempo e sua miséria,
deus negro que não encontra o sono.

O tempo e sua morfologia
feita de nada e de tudo
como alguém que anda
com os calcanhares para a frente.

O tempo e sua bílis negra,
atrabiliário e perverso,
monstro do Loch Ness,
ó profundeza feita de vazio.

O tempo e sua caixa de música
o lugar dos sons prisioneiros
que se escuta é o silêncio das horas
lambendo o ar rarefeito.

O tempo – animal que não envelhece,
nós é que passamos por ele
como alguém que acena de um ônibus
para a imobilidade saudosa
de um bar à beira da estrada.



(do livro Eterno passageiro, Varanda, 2004)






segunda-feira, 4 de março de 2019

Mojave, poema RCF





No deserto de Mojave,
há um cemitério de aviões.
Poeira vazio seco vento estéril
Vento dolorosamente seco do deserto.
Vento cassino
vento jogador
roleta de poeiras
vento máquina
que vem de Las Vegas.
Lá estão os aviões,
enfileirados em sua cova
cova de aço, cova de asas
apodrecendo
do verme da oxidação.
No deserto de Mojave,
os aviões têm sua lápide mais comercial:
a marca da empresa.

Em outros desertos,
não se poderia
expor o humano à oxidação,
os mortos não têm corpo de aço,
homens não podem fazer de seu corpo cova,
os vivos não suportariam
conviver com o horror
de ver os mortos como os aviões de Mojave
a lembrar-lhes a inconstância do minuto
e a perenidade do fim.
Os mortos devem ser enterrados
bem enterrados, bem cobertos
para esconder o horror insalubre.
Mortos devem ser enterrados
e, medo maior dos vivos,
para que não tragam
em sua carcaça como os aviões
no corpo sem asas
seu próprio logotipo: o esqueleto.




(do livro A máquina das mãos. Rio: 7Letras, 2009)

domingo, 3 de março de 2019

'O Viúvo', um acontecimento literário

                                                                                  

O Viúvo, de Ronaldo Costa Fernandes. Brasília: LGE Editora, 2005.


"Publicado, em 2005, por uma editora de fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, é claro que este livro, uma das poucas obras-primas do romance brasileiro deste início de século XXI,
praticamente passou despercebido
do leitor-consumidor. Azar dele, pois, se se fiar nas listas dos mais
vendidos das revistas semanais que, como se sabe, só reconhecem
autores e livros publicados por grandes editoras, vai continuar
a ler muito lixo cultural."
(in: Pravda.ru, Tripov, Germina e o jornal
Primeiro de Janeiro, do Porto, Portugal)      
                                                            Adelto Gonçalves



Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um poeta
do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999;
São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o
Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).