sábado, 16 de março de 2019

Os tambores de São Luís, de Josué Montello

(do livro A cidade e a literatura e outros ensaios. São Luís: Edições da Academia Maranhense de Letras, 2016)

Em Os tambores de São Luís, a ambientação épica se mescla com o drama individual de Damião. Ali está a saga do negro escravo no Maranhão e, por extensão, no Brasil Império. O horror da escravidão coloca a famosa frase do homem como lobo do homem num exemplo maior de degradação do homo sapiens. Josué Montello, assim como o Graciliano de São Bernardo, soube agregar o fator humano e psicológico ao grande drama coletivo. Ao mesmo tempo em que descreve o regime escravocrata em suas minúcias, com a lupa do historiador meticuloso, Josué também se adentra na psique de Damião, sua angústia individual, seu percurso cruel de negro foro que não encontra lugar na sociedade dos brancos. A saga individual de Damião é de grande força narrativa. Um personagem que supera o ambiente, impõe-se pela inteligência e cultura, mas definha e encurrala-se, escorraçado pelo meio mesquinho e amesquinhante. De certa forma, diria que Montello construiu uma fábula. Sua narrativa realista, que se aproxima dos grandes narradores do século XIX, é verdadeiramente verossímil e aposta tanto na realidade que, em certo sentido a supera, a narrativa passa a ser, inclusive porque está em outra época, uma narrativa de cunho quase mítico. Josué Montello, que com sua extensa obra, poderia ser classificado de o Balzac maranhense, também poderia levar outro título, com este Os tambores de São Luís. O do autor da Damiíada, ou seja, o poema homérico do negro brasileiro em sua epopéia de salvar um povo. Damião, assim como Ulisses, participa de uma verdadeira guerra dos quilombos. A partir da volta à fazenda onde era escravo, Damião empreende uma verdadeira viagem de retorno a sua casa. A casa de Ulisses era Ítaca. A casa de Damião é uma casa coletiva: o reencontro do negro com sua raça livre. Observe-se que durante todo o périplo de uma noite, Damião é perseguido por uma identidade sonora: os tambores de Mina que lhe dão a identidade afro-brasileira. Todo o livro é uma seqüência de lutas e de conquistas, de sereias que encantam e ilhas que na verdade são armadilhas como o clero e o magistério, de polifemos que o querem destruir. Dois tempos como na epopéia: o tempo do narrado e o tempo do narrador. Embora não haja o absurdo e o maravilhoso de Homero, existe aqui o homem em luta contra os elementos da natureza e das forças sociais que o fazem herói de sua raça. Para aqueles que estranham a comparação entre o romance de Josué Montello e a Odisséia, de Homero, lembremos que o Ulisses, de James Joyce, que se pretende uma narrativa homérica, valeu-se de apenas um dia do personagem Leopold Bloom para construir sua epopéia moderna.


O romance histórico não tem sua pertinência se não tocar em temas contemporâneos. Esta é a grande virtude e defeito do romance histórico. Se não for bem realizado, soa como coisa antiga, ultrapassada. Há de haver no bom romance histórico o diálogo com dois tempos: os problemas que afligem os de hoje com a trama e o tema de que trata a narrativa. Nesse sentido, Josué Montello realizou muito bem seu projeto estético ao construir Os tambores de São Luís. O problema social da discriminação racial ainda está presente na agenda das discussões do Brasil de hoje.

Quando criticaram Umberto Eco por colocar no romance O nome da rosa, ambientado na Idade Média problemas que não tinham sido aventados naquela época e que pertenciam às inquietações de hoje, Eco respondeu que não entendia o romance histórico de outra maneira, já que a reconstrução de uma época pura e simples de nada valia se não contivesse o germe do permanente e da inquietação do leitor moderno. Eterno e moderno parecem ser as duas palavras chaves do romance histórico.

Em Noite sobre Alcântara, Josué faz do romance um retrato de uma decadência de uma cidade. Na verdade, Natalino, o Major Natalino, herói da Guerra do Paraguai, que retorna à cidade natal é uma metonímia da cidade e a cidade, por sua vez, é a grande personagem da história. Natalino e Alcântara tanto se imiscuem que a infertilidade de um é a improdutividade de outra. Aqui está a cidade abandonada, entregue às suas ruínas e a seu passado faustuoso, às lembranças de tempo de bonança. Na figura balzaquiana do personagem comprador de antiguidades, o judeu Davi Cohen, Josué caracteriza a avidez dos que vivem da decadência alheia. Cohen não é apenas um comerciante, mas um personagem ávido por bens materiais que para seus antigos proprietários representavam valores afetivos e toda uma cultura doméstica que a ganância de Cohen, símbolo quem sabe do capital despersonalizado, desconhece. Junto com Os tambores de São Luís, neste livro Josué mapeia o imaginário maranhense de determinada fase da nossa cultura. Mostra o estágio da economia agrária que levaria a uma industrialização que tarda a chegar. Mostra um Maranhão, por outro lado, rico e majestoso em sua história e nos caminhos e descaminhos de sua cultura. O incêndio final na casa de Cohen vem fechar definitivamente um ciclo. O incêndio na casa do judeu não apenas acaba com suas peças valiosas ou de arte, mas também coloca cinza e ponto final, na passagem do século XIX para o XX, em sua festa de Ano Novo, quando os velhos habitantes retornam para a festividade, o incêndio na casa de Cohen, dizia eu, queima as últimas quimeras de um retorno a uma cidade que há muito deixou de existir.

É também simbólico o fato de Natalino, que se considerava estéril, descobrir, ao final da vida, que tinha gerado um filho. É simbólico porque o filho de Natalino também sugere o renascimento de Alcântara. Não mais com o fausto anterior, mas como promessa de outra vida, da continuidade da existência, da passagem do Natalino velho ao filho novo, ou ainda no plano simbólico, da velha e aristocrática Alcântara a uma promessa de uma vida que não se encerrou com a improdutividade da cidade que vivia da atividade agrária e da escravatura.

imagem retirada da internet

sexta-feira, 15 de março de 2019

A fome, poema RCF



A fome se alimenta de gente:
quanto mais mirrado o homem
maior o dente.
Morde a carne pouca
nem lamentar pode
através da voz rouca.

Mais incha o bucho da fome
aquele que nada tem
e abre mão da vida e do nome
nem sabe pra que vem.

Ali vem outro, retirante,
quanto mais cresce diminui,
se estica feito barbante,
tão fino quanto gilete.
É seguro por uma linha
feito marionete.

A fome também vira camponesa:
da foice o corte perverso,
da enxada o revolver da terra.
Não é tema que dê bom verso
embora acerta mais do que erra:
tem o tiro perfeito da garrucha
no passarinho distraído na serra.

É semente vazia
que cresce quanto mais
avança o dia.

(do livro Terratreme, Fundação Cultura de Brasília)

imagem retirada da internet: portinari

quinta-feira, 14 de março de 2019

Marítimo, poema RCF

 Elina Brotherus's Baigneuse, Orage Montant'

                                  


Que velocidade marítima está em nós,
que Deus sabe de meus pecados
e tombadilhos
à espera de um
dedo de proa
que nos livre do
cais, do caos
e da desordem?

Que jardim marítimo planta
a rosa dos ventos
nesta naufragata
que avança alucinada e pura
e não me popa
destes diários desatinos
                                   de bordo?

Este mar não me salva-vida
me leva o Leme
faz do Rio um mar
e me naufraga na onda
das marés da moda.
Este o dilema, o fato mercante
que me assalta:
a bússola ou a vida?

                                   (do livro Estrangeiro, Rio, 7Letras, 1997)

Largo parto, Memória dos Porcos


rodney smith

Tudo o que pego parto
mesmo quando parto me pego
sendo outro que eu mesmo parto.

Por onde ando largo meus passos,
por onde passo ando ao largo,
por largo tempo meus passos não creem
que vão dar no Largo do cemitério
onde um dia largo meu último passo.




quarta-feira, 13 de março de 2019

Picadeiro de ruínas, poema RCF


 Ilustração | Stamatis Laskos
Estou abandonado ao próprio eixo
que de mim me gira e me solta frouxo,
tudo escurece ao se perder o alvo,
um homem que esqueceu do seu agosto.
Morto me encontro vivo e vivo
me sinto falecido das faculdades
contra o açude da memória
que me transborda de passado.
Minha razão – cavalo esquivo –,
trota no picadeiro de dúvidas,
percebo o salto triplo
do erro: o nulo, o vago, o curvo.
O interruptor das pálpebras
desliga a realidade.



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)




(imagem: Stamatis Laskos)

terça-feira, 12 de março de 2019

O homem e o talho, poema RCF


 

Alguma coisa vem e me talha.
Não é o talho de algo cortante,
objeto pontiagudo, diria um legista,
mas o talho de um leite
que é o princípio de uma desagregação
e, em certo sentido, de sentimentos talhados,
maneira de se sentir em regime de decomposição.

Sou então um homem talhado.
Talhado para o amor?
Talhado para determinada profissão?
Sem que a frase continue
– o talho é intransitivo.


E vou me fermentando por dentro
até que o que me corrompe
deixe de ser fluido e se torne sólido.
Tenho então outro órgão dentro de mim
que não é apêndice nem tem função,
a não ser a de me lembrar
que minhas incandescências
são contraditórias, sólidas e em forma de talho.



(O difícil exercício das cinzas, 2014)

segunda-feira, 11 de março de 2019

O algodão dos dias de fumo

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O algodão floresce no capucho
dos meus dedos, bola de pelo
que se emaranha de branco.
Desse tufo farei outra nuvem,
carregada de nimbos.
O algodão avança minha memória
e quer fazer do quarto
os quartos acolchoados dos loucos,
onde não se pode jogar a cabeça
contra as paredes do tempo,
cobertas de fumo branco.
Comprarei um descaroçador
para tirar o prepúcio da razão.
E minha mão não existirá mais,
tomada toda pela luva branca
os dedos como espinhos
que acusam a brancura do algodão amargo
e a colheita de fetos.
(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

domingo, 10 de março de 2019

Variações sobre a sombra-2, poema RCF


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A sombra e seu exército


O cabo da penúria
que nos exercita nas barras da noite.
A hierarquia de nuanças,
a divisa de penumbras,
a artilharia de chumbo grosso dos pesadelos.

A sombra impõe sua marcha
feita de claro e escuro
e a companhia de si mesmo
que é a reprodução chapada
e sob os pés
da escuridão de nós mesmos.
O espelho de silhuetas
a refletir o perfil do acaso.

Depois, há um batalhão de equívocos,
a caserna de escusas e negaças,
o aquartelamento dos sentimentos
e o acampar de esconderijos.

Aqui nada escapa à patente das máculas,
tudo se curva à tropa dos desvios
e aos poucos se diluem
as inúteis trincheiras de luz.



(O difícil exercício das cinzas, 2014)