quarta-feira, 20 de março de 2019

Outro deserto, poema RCF







Assim a praia deserta,
imóvel, paquiderme de areia,
inventando-se a si própria,
onda que de si se alimenta,
estava o coração do mundo.

As palmeiras perfiladas não discordavam
com suas palmas indecisas
e toda nervura da manhã deserta
era a desfiguração da realidade
postal do tempo estagnado:
praia, homem, olhos e areia.

O que escalda não é a areia fina
nem o sol que se dependura, coco
exaustivo, passado do tempo,
o que escalda é o remorso arenoso.

Este mar que me banha
não é líquido.

Já não tenho a memória dos peixes.



(do livro Eterno Passageiro, Brasília, Ed. Varanda, 2004)


(foto rodney smith)

domingo, 17 de março de 2019

As escadas, conto RCF









         Sobreveio o desastre, nenhum pé subiu mais os degraus. A brancura do mármore, a superfície porosa, os detalhes dos encaixes em cobre, o corrimão de madeira escura.
         Meu método: manhã, limpar de baixo para cima; tarde, descer os degraus, um por um, como quem rola um terço.
         Diariamente mais de quatro mil pessoas. Quatro mil pessoas! Sem falar dos empregados, dos juízes, dos desembargadores, das autoridades, do guarda-livros, dos chefes de seção, do pessoal da biblioteca, dos faxineiros, dos bombeiros, dos guardas de segurança. Oh, como podia esquecer, a segurança pessoal dos juízes, desembargadores, autoridades, chefes e chefes, eram tantos chefes.
         Esse silêncio. A ordem superior que mandou desativar o prédio. De dia, se podia observar a escada com toda clareza e exuberância. Quando começava a anoitecer, subia até o depósito. Lá estavam as velas. Buscava-as, trazia até a escada e a iluminava.
         Um homem tem que ter disciplina. Se ninguém olha para o seu trabalho, tudo vai por água abaixo. Organizei minha hierarquia. João Pândega era um sujeito que tinha de manter sob rédea curta. Os outros dois, eu respeitava. Um deles, Anacleto, mal falava comigo. Já me acostumara ao mutismo de Anacleto.
         Não era eu quem limpava a mesa de Anacleto, do desembargador Anacleto. Os autos se avolumavam, se espalhavam pela mesa. Estava sempre de toga, o desembargador. Era um homem imponente. A gola branca, em contraste com o rosto vermelho, lhe dava um ar de severidade imperial. Não cuidava dos bustos. Aliás, desconhecia quem cuidava dos bustos.
         Os bustos estavam secos, rachados, outros tinham limo. Os que apanhavam sol sofriam de secura, os que estavam na sombra eram perseguidos pela umidade.
         Minhas escadas tinham sombra e luz.
         O desembargador Anacleto não podia reclamar de mim. Se não limpava sua sala ou sua mesa – a sala do desembargador já estava completamente tomada de ratos, os processos sofriam a passagem do tempo e também eram vítimas dos roedores –, ao menos cuidava do próprio desembargador.
         De ano em ano, costurava a barriga para que não saísse a palha e pintava o rosto de vermelho. O mesmo fazia, sem diferença de hierarquia, com o pobre do João Pândega. O homem me escutava falar havia mais de trinta anos e nunca reclamava, fazia cara de desagrado ou emitia um som qualquer que pudesse ser interpretado como fastio.
         Vão demolir o prédio. Há mais de cinco meses cumpro o que considero a minha mais importante missão: cortar as partes da escada e reconstruí-la na fazenda.
         A escada, diz o documento, deverá ser mantida intacta. Esta foi a sua função. Logo, deverá devolvê-la do mesmo modo que a encontrou trinta anos atrás. Leio, fico perturbado. É uma intimação. Querem me julgar por não ter cumprido o contrato.
         Um juiz de toga exuberante, negro como um corvo de gola branca, discursou furioso. Não admitia o sumiço da escada. Sem a escada não se fazia justiça.
         – O senhor entende do que estou falando? – me perguntou. – Sem a escada não se faz justiça. O senhor não tinha compromisso com nada neste mundo além da Justiça. A Justiça!
         E cada vez que pronunciava a palavra Justiça parecia que ia ter um ataque apoplético. O rosto sanguíneo e leitoso se avermelhava, as veias do pescoço inchavam, as mãos tremiam, os olhos reviravam.

(do livro Manual de Tortura. Brasília, Esquina da Palavra, 2007)