sábado, 27 de abril de 2019

Um homem é muito pouco, por Lourival Serejo

O ROMANCE DE RONALDO
Jornal "O Estado do Maranhão"




Acabei de ler o último romance de Ronaldo Costa Fernandes, com este título instigante: “Um homem é muito pouco” (São Paulo: Nankin, 2010). Antes, já havia lido “O viúvo” (Brasília: LGE, 2005), um romance muito elogiado pela crítica, mas cuja leitura não me causou o impacto desta obra ora comentada. Aliás, elogios o autor já vem recebendo há muito tempo, inclusive de forma objetiva, ao vencer vários concursos literários, como foi o caso do almejado prêmio “Casa de las Américas”, pelo romance “O morto solidário”, que ainda não li.
O desafio da leitura de “Um homem é muito pouco” começa pelo número de páginas: 487. Para a pressa em que vivemos, é um número considerado elevado. Só o prestígio do autor pode tornar esse detalhe irrelevante, como é o caso de Ronaldo. À minha frente estou com o propósito de ler o “2666”, de Roberto Bolaño, com 852 páginas. Por enquanto estou marcando corrida.
O romance de Ronaldo Costa Fernandes compõe-se de quatro partes, com uma sucessão de histórias distintas que se interligam em alguns pontos. Aliás, esse entrelaçamento de destinos é a tônica notável do romance. Adianto que a terceira parte arrebatou com mais intensidade minha preferência.
O leitor deve saber que vai encontrar um romance moderno e maduro, que não segue o clássico encadeamento de começo, meio e fim, com os personagens permanentes que desembocam num final esperado no círculo de suas expectativas.
Milan Kundera, em seu livro “A arte do romance”, lembra que o romance não examina a realidade, mas a existência, como um campo das possibilidades humanas. A meu ver é este o catálogo que Ronaldo oferece ao tratar da história dos personagens que desfilam no romance. São as possibilidades que surgem em razão das ações do homem, das relações familiares conflituosas, dos anseios e sonhos recalcados, dos condicionamentos e, até mesmo, do absurdo do cotidiano.
Trata-se de um romance escrito por um professor de literatura, pleno de todas as técnicas da escrita, fatores que poderiam retirar a leveza do estilo e provocar uma reação negativa no leitor. Mas nada disso ocorre, pois o estilo é leve e me fez lembrar alguma coisa como mastigação. O autor fica remoendo o fato, indo e vindo, repetindo, fixando, o que torna agradável a leitura e faz o leitor viver a realidade que a ficção pretende criar. São frequentes passagens como esta: “Nunca vi Alice tão solar, nítida e límpida. Eu via Alice através de um olho só. Era o olho que com lente de aumento se avalia a joia. Que joia era Alice? Alice não era joia alguma, pois joia é um fetiche da mercadoria como ela mesma disse. Alice era submarina. Gosta das mulheres submarinas. Nossa conversa era toda debaixo d´água. Eu abria a boca e da boca não saía nem um som. Ela abria a boca e da boca de Alice não saía nenhum som. Nós só precisávamos das borbulhas para nos entender.”
Apesar de Ronaldo ser maranhense de São Luís e morar em Brasília, as histórias que tecem o romance se passam no Rio de Janeiro, cidade que, pelas descrições minuciosas dos lugares, deve fazer parte, também, da vida do autor como fazia parte da vida do narrador da segunda parte do romance: “Não posso fugir do Rio de Janeiro porque o Rio de Janeiro está em mim como fígado ou rim. Não posso viver sem o fígado, não posso viver sem o rim”.
Como já disse anteriormente “Um homem é muito pouco” revela a maturidade de um escritor que não faz romance pela primeira vez, que já teve testada e aprovada sua competência como romancista.
Quanto ao título do livro, se o leitor não encontrar a resposta após o término das suas 487 páginas, só perguntando ao autor que detém a chave dessa inspiração. Umberto Eco, ao explicar as origens do processo de criação de “O nome da Rosa” disse que um título deve confundir ideias, nunca discipliná-las.
Com certeza posso dizer que tantas páginas ainda me deixaram a sensação de que foram muito poucas para o que ainda se desejava saber sobre certos personagens.

imagem retirada da internet: magritte

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Voragem, de Tanizaki


“Vim hoje à sua casa com a intenção de lhe contar todo o incidente, sensei, mas...noto que interrompi seu trabalho. Tem certeza de que não se importa? Narrada em detalhes, a história é longa e tomará um bocado do seu tempo... Eu podia até registrar os acontecimentos no papel em forma de romance e submetê-lo em seguida à sua apreciação, soubesse eu ao menos redigir melhor.”



Assim começa o romance Voragem, de Junichiro Tanizaki (1886-1965). Publicado em 1931, ambientado nos anos 20, no Japão, Tanizaki, um dos mestres maiores da literatura japonesa, se aventura em Voragem (Cia. das Letras) como autor de envergadura moderna, a ombrear-se com as temáticas do Ocidente, e ainda mantém o vínculo com a tradição que lhe deu, segundo muitos críticos, seu livro mais importante: A vida secreta do senhor de Musashi. A história de Voragem é contada por um dos personagens que se dirige a um sensei (pessoa com formação superior e que tem aura de orientador), do qual o leitor nada sabe, pois não aparece em cena e serve apenas para que a narração dos fatos aconteça. Um quarteto amoroso se instala, com aventuras homossexuais, tramas e desvios narrativos, surpresas e outros truques que o autor nos brinda. Tanizaki não utiliza técnicas narrativas sofisticadas como seus pares no Ocidente nos anos 30. As surpresas e os turnpoints ocorrem dentro da própria narrativa, linear e tradicional, sendo a trama mesmo que nos surpreende, emociona e nos desconcerta.

Voragem é um romance intimista, embora as ações exteriores das personagens sejam muito presentes. A análise da psicologia dos personagens é desconcertante, pois o que é afirmado logo a frente é desmentido e o leitor fica com a sensação de que, como sua última gelstalt do personagem, ela logo será desfeita ao apresentar um comportamento que o narrador desconhecia.

O narrador do livro, Sonoko, uma dama da classe média japonesa ascendente, casada com um advogado, apaixona-se por outra moça, solteira, de rara beleza. Tem-se a impressão de que a grande vítima de toda a trama é a própria Sonoko que, somente nas páginas finais, apresenta a versão com que findará o livro. Ao negar ao leitor a confissão completa e logo no início, o que desfaria a tensão com que o romance é mantido, a narradora costura toda a história com descrições das ações dos personagens e a análise desconcertante que ela julga ser a definitiva em relação ao quarteto amoroso.

Essa habilidade narrativa não é própria da literatura oriental. Voragem é um romance bem moderno e arrojado para sua época e deve mais às técnicas narrativas do ocidente do que ao paisagismo, tema amoroso, os samurais e outros personagens que ilustram o passado do país insular.

Por fim, uma última observação: o que predomina em Voragem é o espaço interior. Embora haja poucos momentos em que os personagens se aventuram por espaços exteriores como na a fuga de Sonoko pela praia, vestida com maiô à ocidental, a maioria predominante refere-se às ações dentro de casa, na escola de pintura, no hotel de encontros, no escritório de advocacia do marido. Já em A chave, Tanizaki se exercitara nos ambientes interiores e no tema obsessivo do adultério – visto de maneira suave, magoado, doloroso e silencioso. No caso de A chave, eu até tenderia a dizer que o grande espaço romanesco se restringe aos cadernos que servem de diário ao marido e à esposa que estimula o parceiro com a sua traição. (RCF)

imagem retirada da internet

domingo, 21 de abril de 2019

O crime perfeito, poema RCF


Pawel Kuczynski
Sentar-se à mesa do mundo
e ver a nova luta de classes:
os pequenos-hamburgueses
contra a dieta dos bóias-frias.

No mundo do McDonald’s
não há tempestade nem calor,
o sujeito no ar condicionado a viver
num balão de oxigênio.

O mundo infantilizado e virtual,
ainda comeremos sem tridimensionalidade,
bichos de videogame
que pastam número numa tela.

A música de câmara
do tilintar das caixas registradoras.
O fígado verde, o baço rubro, o coração azul,
as tripas lilás do homem de plástico
da aula do ginásio no Brasileiro de Almeida.

Oh, admirável mundo velho,
com suas máquinas primitivas,
seus antiquados transplantes
de córnea e fígado,
sua precária medicina de implantes de braço
e de chips no cérebro.

O mundo gira em torno da órbita
                              do olho;
                              só o olhar é que importa
                              e só o olhar nos sacia, mata a fome,
                              amaina a sede, nos dá sexo
                                                              e nos excreta.


(imagem retirada da internet: culturamix)