terça-feira, 19 de novembro de 2019

Prescrição médica, poema RCF







É preciso que o homem
chore três vezes ao dia.
Não é necessário que saia lágrima.
O importante é que o choro
se faça como o sol se faz
para os cegos que só o sentem
pelos mil olhos dos poros abertos.

É preciso que não se enxuguem
essas lágrimas: não há lenço
que as alcance, nem olhos vermelhos
que os delate.
Três vezes ao dia
como o dia é divido
em manhã, tarde e noite.
Não há de buscar o medicamento
em farmácia, de laboratório ou de manipulação,
alopata, homeopática ou fitoterápica,
pois não é algo que se tome,
injete ou passe na pele.
É preciso que o homem busque o santo graal do amor
e se multiplique como matriosca.
É preciso que chore porque é uma terapia coronária:
o choro é anticoagulante,
faz baixar a pressão do mundo.
E por fim à noite quando os choros são mais escuros
lave a alma encardida de engano
e sonhe que chora
para no sonho acabar com a desesperança
que é uma torneira aberta de onde não sai água.




(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)





domingo, 17 de novembro de 2019

A arte do corpo, poema RCF






Numa dessas Bienais de São Paulo,
vi de longe, sozinho, passarinho,
o poeta Mário Quintana.

Durante anos a imagem – peixe azul – me perseguiu.
Por fim, entendi a recorrência:

Mário Quintana era móbile,
magra body-art,
andar performático,
existência conceitual,
em seus parangolés de ossos e calvícies,
em sua lígias & papes
de velho movido a arame,
seu corpo virtual,
ali, entre os cimentos desarmados do Ibirapuera.

 
(do livro Eterno passageiro, 2004)
 
imagem retirada da internet: mario quintana