sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Por que um homem é muito pouco, Edilson Dias Moura


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Edilson Dias Moura
Crítico Literário, Mestre pela USP, Editor da revista Opinães.


Publicado no fim de 2010, começo de 2011, pela Nankin, Um homem é muito pouco revela mais do que se espera sobre nosso tempo. Ao transformar em simbólico, representativo, o usual e imperceptível, e até mesmo o repugnante, em literatura, o romance nos leva, contra o pano de fundo de nossa memória, ao reconhecimento dos muitos de nossos pseudovalores ético-morais, produtos do consumo-capitalista e do marketing, de uma estrutura sociomental reificante; contudo, não num sentido de denúncia social, mas em termos de elaboração estética literária. A surpresa é tal que aquelas primeiras elucubrações iniciais, dos prêmios principalmente, se dissolvem completamente sob o prazer da decodificação literária.

(...) Clemente reconheceu o homem que o assaltara. O coração agitou-se. Olhou para o pescoço e o cordão de ouro dele estava no pescoço do homem. Clemente avançou no pescoço do homem, arrancou o cordão. O cordão na mão lhe devolveu as forças e suas pernas rejuvenesceram trinta anos. As pernas também pensam. E o que as pernas pensaram naquele momento é que não deveriam ficar ali paradas. As pernas servem para sustentar o sujeito como pilotis, mas também servem para transformar a parte de cima do corpo em um tronco leve. (...) A metade de baixo corresponde às pernas e quando as pernas viram máquina de correr então a parte de cima é apenas um busto que é levado por uma carreta ligeira. (FERNANDES, p. 13, 2010)

Diante da ousadia do texto, percebemos que o romancista não traz na bagagem apenas alguns romances, alguns prêmios, mas sim certa compreensão da arte e da prática literária bastante surpreendente perto de tudo que nos tem sido apresentado nos últimos anos, seja por grandes ou pequenas editoras. Por meio de uma escrita muito particular e de um modo de descrever e de compor próprios, vai-se revelando a atualidade desse romance pouco a pouco.

Combinando elementos inusitados do modelo automatizado do mundo com o modo de funcionamento do raciocínio de seus personagens, suas manias, anseios etc., o autor surpreende-nos com o desenvolvimento de uma narrativa constituída de elementos que não se deixam analisar classicamente: já não se trata apenas da reificação e sua ação nas atitudes mentais, embaralhando valores mercantis e qualidades humanas; mas sim de um esgotamento do sentido humano das coisas, do sentido de fragmentação, inclusive do sentido de homem, menos que um “mineral” na vida quando destituído de um papel social. Algo só verificável em contraste com os valores de nosso próprio tempo e suas demandas, sob o fetiche dos avanços tecnológicos e da vida informatizada.

Conta-se, em determinada altura, quando se reúne a família de Eurico para comemorar o aniversário da mãe, que um de seus irmãos morrera ainda menino. Desde então, a mãe permanentemente o esperava. Para aliviar a dor dessa ausência, os familiares passam a inventar uma biografia: “foi ao colégio, fez faculdade, agora o menino morto tinha casado e ainda não tinha filho” (FERNANDES, 2010, p. 258). Eurico é relojoeiro, e desde o início desta parte do romance nos habituamos a uma espécie de assimilação da consciência, do mundo e do próprio personagem, pelos mecanismos do relógio e suas dimensões maquinal e temporal. E é nesta reunião de família, em torno da mãe numa cadeira de rodas, que encontramos uma das mais belas passagens desse romance:

Um pouco da tristeza de Eurico é que não podia fazer a felicidade da mãe. A mãe perdera os rolamentos há muito tempo. Tinha gente na família que dizia que a mãe começou a atrasar as ideias quando morreu o menino morto. E traçavam o percurso de atrasos das ideias da mãe. Lembra a viagem à Bahia? Lembra quando a mãe esqueceu onde morava? Lembra quando a mãe... e davam corda no relógio da memória a lembrar fato e datas em que a mãe se perdera de si à procura do menino morto. (FERNANDES, 2010: p. 259)

Sucede a esta passagem magnífica o elo com a primeira parte do romance, quando Clemente procura recuperar o cordão de ouro que lhe furtaram e, ao arrancá-lo do pescoço do suposto ladrão, suas pernas rejuvenescem trinta anos. Adriano, filho de Eurico, apaixonado da prima a dançar twist, observando as pernas da prima, compara a juventude e velhice da seguinte forma: “As pernas mortas eram o começo de o homem virar mineral. As pernas minerais da avó, por exemplo, já diminuída da cabeça, a transformava num busto que se recusava a deixar a vida.” (FERNANDES, 2010: p. 261).



quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Memória dos Porcos e Um homem é muito pouco, por Cagiano

Uma cartografia das inquietações


 



Ronaldo Cagiano

Diário da Manhã (Goiânia, domingo, 7 de outubro de 2012)

No cenário da literatura brasileira contemporânea, tão povoada de obviedades e portentos de laboratório, é comum o incensamento de mediocridades, o altar para a subliteratura e o espaço generoso que se dá mais à vida literária do que à própria literatura. Desse modo, os cadernos de cultura da mídia hegemônica e monopolista fazem silêncio, ou negligenciam criminosamente a existência de bons poetas e ficcionistas espalhados pelo Brasil. Há um sem-número deles que não frequentam os suplementos dos grandes jornais ou revistas do gênero por culpa e obra da absoluta incapacidade da crítica com assento nesses veículos de perceber o óbvio, de dar espaço e valor ao que realmente tem.

Entre esses autores – que em nada devem aos escritores homologados pela imprensa do eixo Rio-São Paulo – encontra-se Ronaldo Costa Fernandes, maranhense radicado em Brasília, autor de vasta e premiada obra, cuja bibliografia, se vivesse em qualquer país da Europa, teria o devido reconhecimento e justiça, pela alta voltagem estética e pela universalidade de sua temática.

Em seus dois últimos livros, o romance Um homem é muito pouco (Ed. Nankim, SP, 2010, 488 pgs, R$ 50) e o volume de poemas Memória dos porcos (Ed. 7 Letras, Rio, 2012, 110 pgs.Capa dura, R$ 36), Fernandes consolida o leitmotiv de suas inquietações criativas. Nessas duas obras singulares, está presente o que caracteriza seu projeto literário: uma profunda imersão na condição humana, tratada na prosa e na poesia com uma dimensão existencial, em que a passagem do tempo, os mistérios da vida e da morte, a condição social e política do homem num etiquetado e sem rumo, a memória histórica e política e o desencanto com as utopias são tratados com densidade trágica, mas poética.

Caudaloso, instigante e desafiador, Um homem é muito pouco é composto de quatro histórias, cenários e protagonistas distintos, mas que guardam entre si um liame e uma tensão, em cujo desenrolar se expõe a desumanidade da ditadura militar e todas as experiências dilacerantes – que reduzem o homem a quase nada – e o que o tormentoso chumbo da opressão, com seus fantasmas e dilemas, pode provocar no íntimo e na sociedade. A figura do capitão Vaz, réu incólume assombrando como um escroque impune à la  Brilhante Ustra, é emblemática. Personagem que carrega o cheiro de enxofre, os miasmas dos porões e o pânico dos algozes, desencadeia aquele sentimento de impotência, aquela condição inerme de tantos ao enfrentar um sistema que nos aparta e nos desvincula do próprio status humano. A existência escandalizada e banalizada pelo Mal. O homem como impossibilidade de ser, de ter, de pensar, de existir nesse espectro de perseguições e choques. O autor penetrou essa dor coletiva para traçar um painel sincero, pungente e humano, porém sem uma inflexão ideológica ou partidária desse período negro em nossa história, de um Rio de Janeiro que reverberava a espantosa realidade que vivíamos, o que nos remete aos grandes romances de geração.

Em A memória dos porcos, Ronaldo prossegue seu inventário do desassossego, a contabilidade das perdas e um olhar agudo sobre nossa precariedade, na linha de sua permanente inquietação metafísica e existencial. Entre a erudição e a leveza, a linguagem concentra enorme poder metafórico e uma dose de causticidade e ironia para tratar de temas tão antigos, mas renovados pelo seu sopro humanista, pelo seu bisturi psicológico, com que faz a catarse de nossas perplexidades e angústias. É o homem, que nunca é pouco, o centro e sua reflexão poética. É a vida, com suas pocilgas e seu pomar de bactérias, às vezes tão solapada pela realidade, miserabilizada pelo caos e fragilizada pelos fetiches da sociedade de consumo, que merece sua investigação. O ser e o tempo, objetos de sua contundência poética, expostos a uma necessária dissecção. Esse livro, vertiginoso e verdadeiro, memorializa nossas mais arraigadas questões, entranha-se no ambiente onde hibernam nossas dúvidas para, sob a pele das palavras, nos ajudar a remover os palimpsestos que ainda escondem o grito deflagrador de toda a esperança. A leitura de A memória dos porcos nos parece indicar que em Ronaldo Costa Fernandes há aquela mesma necessidade vital e imperiosa, aquela sede onírica da busca da palavra redentora, de que nos falou René Chair:  “A poesia me roubará a morte.”

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Férias, RCF





Aqui, quieto em meu canto
sem mexer-me, olhando a luz higiênica do sol,
penso na inutilidade cansativa de malas e hotéis
para divertir-me nas férias estrangeiras.
Não, só preciso da vontade,
nem sempre firme,
um vento estradeiro,
um alarde distante de pássaros
e nada além do meu corpo.



(do livro A máquina das mãos, 7Letras, Rio, 2009)


imagem retirada da internet: miró


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Poema da terra, RCF



I


é preciso revolver
a terra do leito
o leito da terra
na noite bem dormida
              úbere de sêmen
de plantio
os lençóis do pasto
para acordar
no dia seguinte
                  fértil
             – colcha desfeita –
o hálito
ainda no travesseiro
das plantações afofadas

mas o latifúndio tem quatro paredes

onde nenhum quadro se pendura
e para que ninguém
possa habitar
o quarto do campo do latifúndio
construiu-se
uma estreiteza de altura
onde no piso está o teto
e no teto está o piso