sábado, 29 de fevereiro de 2020

Vício de concreto, poema RCF


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Uma cidade só deixa de ser hipótese
quando sua cartografia
estiver na retina de quem a habita.
Esta cidade cresceu em mim
como invasor que fez de baldio um terreno.
Um jogo de damas
que, em vez de comer pedras,
o tabuleiro se enche de peças.
Esta cidade – ou qualquer outra –
é uma pele de tambor que se estica.
Uma cidade, depois de crescer pras bordas,
é uma planta que para uma folha
nascer outra tem de apodrecer.
Por isso essas plantas do centro histórico
estão cheias de fungo.
Trago no bolso o eletrocardiograma
da cidade que é seu mapa.
Possuo mais cidades
que meus olhos podem reter.
Dentro de mim, as cidades
me habitam com sua voracidade
de ruas de pensamento pecaminoso,
de becos escuros do medo,
de viadutos suspensos
sem começo que o alimente
sem fim que o devore.
Uma cidade não se resume a um sonho
de cavernas unidas
sob o fogo do sol.
Nela, cada apartamento
tem seu rio particular
que existe nas torneiras
assim como o campo de concentração
que os bicos de gás
sugerem quando não alimentam
as esperanças de mesa.
A cidade é macerada
até seu suco gástrico
corroer as estruturas
e os nervos
– que também são estruturas –
dos homens.


(do livro A máquina das mãos, 2009)






domingo, 23 de fevereiro de 2020

O quarto de despejo, poema RCF










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Uma palavra tão pesada e úmida 
que seria difícil emiti-la.
Pobre daquele que se imagina incólume,
perdido em seu casaco de êxtase.

Todas as coisas perdidas
são inquilinas do longe.



(poema do livro Matadouro de vozes. Rio: 7Letras, 2018)