quinta-feira, 5 de março de 2020

Empório de cenas, poema RCF



 


Um inventário de cenas
do passado estão penduradas
no empório da memória,
mas não quero buscar
o instante perdido
no balcão dos anos
– não há tempo,
apenas o presente
que é um trem sem parada.

O médico prescreve:
eliminar o passado
duas vezes ao dia.
Leio a bula:
Composição: 1984 mg
de presente fraturado.

O remédio me extirpará
o apêndice da infância,
que só serve para inflamar.
Deixei de ser o que sou
faz muito tempo e me felicitarão
por me desfazer da vesícula
dos tortos e angustiados.
Terei a anestesia das marchas:
cinco para a frente
e nenhuma marcha a ré.                                       



(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)



 (foto:vivian maier)

segunda-feira, 2 de março de 2020

Coração, poema RCF



Arte | Antonio Lee
Antonio Lee


Meu coração é um bicho
que coaxa dentro de mim
às vezes se acanha
outras dispara seu relógio de sangue.
Meu coração não sabe dançar:
quando começa seu descompasso
pisa no pé das minhas dores.
Ora late como cão
sem corpo ou rabo
ora lembra caixa vazia
um oco no sem jeito no peito.
Meu coração tem sua ginástica
corre mais que o dono
quando a hora é escassa.
Meu coração é um fole
que mal se enche
logo se esvazia.
Meu coração tem estômago fraco
não é bom da cabeça
tem mania de grandeza
quer ser melhor do que é,
embora saiba que, preso,
não tem pernas pro que der e vier.
Meu coração tem vocação militar
por isso marcha rubro
no mesmo lugar
como um recruta punido.


(do livro A máquina das mãos, Rio: 7Letras, 2009)



imagem retirada da internet: magritte