sábado, 14 de março de 2020

O pio, poema RCF




A tristeza tem muito de celulóide:
coisa antiga que parada a máquina
se desmancha ao calor das lembranças.
O pio que ouço é pio da morte.
Mas se a morte é silente
como ouvir o que não é mais presente?
como escutar o som do que não se ouve?


O pio desse pássaro
só é emitido por ave em certo cativeiro.
Por isso, pia em outra freqüência:
só escuta quem tem anatomia
que otorrino nenhum alcança:
aquele que o labirinto do ouvido
invadiu outros hemisférios
fez de ouvido o pensamento
fez som onde reina o silêncio
fez do crânio um cativeiro.




(do livro A máquina das mãos. Rio: 7Letras, 2009. Prêmio de Poesia 2010 da Academia Brasileira de Letras)


(imagem retirada da internet: s/crd.)

As borboletas ásperas, poema RCF





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Nada havia maduro
muito menos nós nos poderíamos
colher tão verdes éramos.
Éramos eternos
como eternos são sonhos
que permanecem sonhos.
Havia caminho sem rumo,
desvios  assustadiços,
becos diversos,
atalhos que encurtavam
o que não estava distante.
Os olhos redondos da surpresa
permaneceram na terra dos inominados
e deram lugar hoje
aos espantos cansados de pálpebras baixas.
As maçanetas que eram borboletas
presas às portas se soltaram
e deixaram no quarto a aspereza do vazio.







(do livro Memória dos porcos, 2012)

quarta-feira, 11 de março de 2020

Um homem é muito pouco, trecho 2

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Uma das frases que Clemente mais gostava era “não era ruim, mas também não era bom”. Clemente a usava para tudo que era indistinto, consumido pelo tempo, estéril ou indiferente. Pois bem, o macarrão do restaurante do hotel não era bom, mas também não era mau. Neste exato momento, sem que Clemente percebesse a carta deslizou bolso afora e, gravitando, caiu entre o lambri que soltou e a parede. Clemente, ocupado com sua fome que subitamente retornara, não percebeu que a carta perdera seu peso. E, com seu peso normal de papel, pôde ela esgueirar-se do bolso sem que o pretenso dono se precatasse da fuga. Mateus e Clemente pela primeira vez conversaram sobre amenidades, Clemente contou uma história longa e divertida de um clandestino.
Era um angolano, um rapaz, que Clemente pegara roubando comida. Não tinha se alimentado durante três dias e estava numa condição abaixo do animal. Assustou-se quando viu Clemente. Ficou, contudo, mais preocupado com o pedaço de pão e salame que tinha nas mãos e não queria perder do que ser descoberto e levado ao comandante. Ele, o clandestino, defenderia até a morte seu direito de comer. Pegou uma faca de cozinha e ameaçou Clemente. Este riu, mostrou mais comida e disse que não se preocupasse que não iria delatá-lo. Os olhos do menino negro eram olhos inteligentes e Clemente acobertou o angolano que desceu no cais da Praça Mauá, estudou, casou e hoje é advogado com banca e tudo. Clemente ficou pensando que o pior clandestino não era aquele angolano faminto, o pior clandestino é o sujeito que anda pela vida como se não pertencesse a embarcação nenhuma. Ele, Clemente, se achava clandestino, talvez por isso a solidariedade imediata e reta. Onde quer que estivesse Clemente se sentia invasor, não permitido, escondido, sujeito que pode ser expulso a qualquer momento da embarcação, dos lugares, dos restaurantes, dos hotéis, da rua mesmo. Esse sentimento de clandestinidade poucas vezes desaparecia. O que mais doía, entretanto, era sentir-se clandestino em sua própria casa.
Depois do almoço, ambos retornaram às suas casas. Clemente, cansado de tanta agitação, deitou-se na cama, com roupa e tudo e adormeceu. Dormiu como se fosse noite, um sono árduo.
Clemente entrou na cozinha no navio ao perceber a luz acesa. Lá estavam em volta da mesa o capitão Vaz, Selma, Oswaldo e Mateus. Oswaldo, como o companheiro marinheiro lá dele, vestia-se de mulher, o capitão Vaz não tinha os braços e reclamava: Por favor, Clemente, não faça isso comigo. Selma parecia mais uma prostituta dos portos em que o navio parava e não falava em língua humana, mas na língua suína que é a língua dos porcos. Selma tinha focinho, a boca pequena, o corpo gordo e único de porca. Só Mateus não havia se transformado. Era o velho Mateus de sempre. Anos antes, num porto sujo e pobre da Ásia, com poucos guindastes e sem armazéns, Clemente vira porcos comerem um miserável. Nunca imaginara que os porcos poderiam comer um ser humano e, muito menos, que um ser humano se deixasse comer por porcos. Mas o homem era velho e fraco, um fiapo asiático de homem e os donos dos porcos, também famintos, açulavam seus porcos a se alimentarem de carne humana. Serviu os pratos e nos pratos estavam os braços do capitão Vaz que chorava, enquanto Mateus, o travesti Oswaldo Lee Oswald e a porca Selma devoravam os braços do capitão Vaz. Um baque surdo contra madeira o despertou.
Entre o sono e a vigília, sem se dar conta ainda de onde estava, se no quarto de sua casa ou na copa da cozinha do navio, Clemente se perguntava se encontraria com o capitão Vaz aleijado, a porca Selma e Lee Oswald mulher. Ainda mal despertava quando então escutou o segundo baque. Percebeu, não desfazendo ainda por completo a alucinação do sonho, que estava na Praça 11 e aquele barulho poderia ser de alguém a invadir a casa. Levantou-se. Sentia-se tonto. Voltou-lhe o balançar de nave. O sentimento de aprisionamento caiu-lhe fundo na alma com a decisão e o peso de âncora lançada n’água. Entrou corredor adentro a procurar a fonte do ruído. Vinha da cozinha. Conhecia aquele estrépito: o esquartejamento das aves e carnes. A quem esquartejavam?
Era d. Evelina que, com um cutelo, partia o frango. À primeira vista, lembrou-lhe um elemento a mais do pesadelo. D. Evelina era baixa e gorda, com vincos profundos no rosto, cortando a pele escamosa, que mais lembrava terem sido feitos a talho do que pela erosão da idade. Tinha mãos pequenas, mas fortes, nunca pedira a Clemente que lhe abrisse pote, nem recusara o peso de uma estante. As pernas grossas, de veias escuras serpenteando canela acima, davam-lhe o aspecto de precária estrutura, embora firmemente fixada ao chão. Os olhos saltados e as narinas de fole aberto punham fúria onde só havia humildade. A empregada se espantou ao ver o patrão entrar. Ele, ainda prisioneiro do medo, tinha o rosto sem sangue, as mãos poucas, as pernas sem apoio. Mas foi o olhar de náufrago o que assustou a empregada. De cutelo na mão, ela avançou para Clemente no intuito de socorrê-lo. Se ao menos ouvisse o que ela dizia, seu Clemente, o senhor está pálido, está doente, quer ajuda, chamo alguém, médico ou ambulância? talvez não sofresse o pânico de ver sua empregada, como no pesadelo, investir para ele a fim de matá-lo.




(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)