terça-feira, 23 de junho de 2020

Um homem é muito pouco 4




O senhor está dormindo com uma morta, não é verdade, seu Clemente?, perguntaria o delegado.
Mas ela está viva e é minha mulher, delegado.
O senhor então quer insinuar que a relação de vocês é uma relação entre um homem vivo e uma mulher viva?
É isso, delegado.
Ora, não me faça perder o tempo, o senhor está dormindo com uma morta, seu Clemente. O senhor não tem vergonha de fazer sexo com uma morta, seu Clemente?

O casarão estava cheio de infiltrações e havia perdido as belas cornijas e outros adereços de cimento e gesso que arquitetos e artesãos do princípio do século haviam desenhado na casa como quem grava no papel o que será feito em tijolo. Eriberto não tinha empregada, a casa cheirava a cola de sapateiro que, diga-se a verdade, não vinha da casa de Eriberto, mas da moradia ao lado. O morador do lado era um árabe como havia sido o padrasto de Eriberto que aprendera a fazer sapatos e mantinha pequena oficina nos fundos do casarão. Eriberto não conheceu o pai, se pai havia para conhecer. A mãe de Eriberto chegou grávida na casa do velho Anuar que emigrara com mulher e uma filha para o Brasil, vindo do vale do Bekah. A mulher morrera na viagem, longa, numa terceira classe de porão, de beliches que empilhavam os corpos em sua caixa aberta e tripla de madeira.
Uma terceira classe magra, uns respirando os humores dos outros, parando de porto em porto, descarregando os árabes, turcos e libaneses. Coube a Anuar o porto do Rio de Janeiro. A mulher fora sepultada no mar. O mar é um grande cemitério de água salgada. O que Anuar, católico, não pôde construir foi um túmulo para a mulher. Se fosse em terra que a mulher tivesse morrido teria enterrado num carneiro elegante e de mármore, com anjos retorcidos e de asas, tocando harpas e olhando mirificamente para o céu como devem olhar os anjos de pedra ou sem pedra. Mas o mar não deixava edificação nenhuma. Por isso, o que restava a Anuar, quando estava na praia de Copacabana ou na Urca ou mesmo no passeio público das muradas da praia do Flamengo, era rezar.
          Deus havia lhe construído o maior túmulo do mundo que é túmulo dos marinheiros: o mar. Pois quando a mãe de Eriberto chegou, grávida, no casarão da Rua da Alfândega para pedir emprego de costureira, Anuar não só arrumou emprego, mas deu moradia à moça de olhar claro que lembrava a mulher morta dele e Anuar chorou no escuro, no quarto dos fundos, choro antigo e maronita, choro de saudade e reencontro, Anuar acreditava que ali vinha a mulher morta na viagem, ressuscitada e prenha, como nas histórias da Bíblia.
          Anuar fez a mulher chefe das costureiras já que tinha habilidade para tal e a fez também chefe da casa porque também era habilidosa para o amor, a cozinha e a decoração do lar. Além do mais, Anuar tinha a filha moça e não sabia como educar filha moça. A mãe de Eriberto pariu o menino, cuidou os assuntos de moça da filha de Anuar e ainda à noite tinha forças para receber o patrão e amante que chorava depois de gozar e ela não entendia se chorava de prazer ou de lembrança da mulher morta no mar, porque uma mulher morta no mar é um golpe maior que uma mulher morta em terra, assim pensava a mãe de Eriberto.
          Não demorou muito a febre tomou conta do corpo macio e jovem da moça árabe que ainda mal sabia falar o português. O pai se desesperou. Os negócios começaram a andar mal. Os funcionários passaram a roubá-lo. A mãe de Eriberto via que a vida dele desmoronava junto com a doença da menina e o abatimento do pai.
          Desde então que ela passou a tomar conta não somente das costureiras, mas também da casa e dos negócios. Era ela quem regateava o preço das mercadorias que comprava a atacado, discutia com os fornecedores, fazia o livro-caixa, vigiava os empregados para não ser roubada e ainda suportava o choro de Anuar depois de penetrá-la, o corpo ausente e cansado, o corpo feito beliche de terceira classe. Mas nem toda a devoção e cuidado da mãe de Eriberto fizeram Anuar salvar a filha da febre desconhecida.
         Já quando a mãe morreu, parecia que herdava uma família morta e não o casarão e o negócio do padrasto. Mortos eram os móveis, mortas eram as paredes, morta a freguesia – viciada e envelhecida –, mortos eram os retratos, mortos eram os negócios. Aos poucos foi dando vida ao casarão, mudou de ramo, trocou de fregueses e noivou.
          Mas não podia procriar nem mesmo ter sexo com a noiva e então o casamento também viveu numa fotografia no fundo da gaveta, fotografia também morta.
         Antes não via Anuar como pai.
         Depois de sua morte, Eriberto sentia-se até mesmo árabe. Pegou alguns cacoetes da etnia, a culinária não foi difícil assimilar, a língua já a entendia ao falar com o padrasto. Eriberto nunca se sentiu tão árabe em sua vida. Era um libanês do subúrbio carioca. Era um libanês de ventre nordestino. A casa inteira tinha vozes dos mortos. Não era uma coleção de vozes do além como nos encontros espíritas. Não, Eriberto não acreditava em espírito, mas que a casa estava cheia de passado, ah, lá isso estava.
         Os corrimãos tinham vozes, as paredes contavam histórias de outro tempo, a irmã que morreu de febre aparecia nas noites de insônia e Eriberto não sabia que havia sonhado ou se a vira acordado.
Os sonhos mesmo se modificaram. Eriberto não dormia nunca, mas quando cochilava lá vinham outra vez a mesma paisagem que não conhecia, o mesmo povo que nunca visitara, a mesma vila onde nunca estivera, os parentes todos que nunca vieram ao Brasil e Eriberto que nunca foi até o vale do Bekah. Eriberto sonhava com o vale do Bekah como se tivesse estado nele durante o dia. Andou se consultando com médiuns. Perguntou aqui, perguntou ali, e lhe deram explicações compridas de vidas passadas. Outros diziam que não visitava nos sonhos o passado e, sim, que via nos sonhos o futuro. Mas não estava nos planos de Eriberto visitar o vale do Bekah.
         Eriberto cansou-se de tanto procurar explicação, até mesmo porque nenhuma o convencia e se acostumou a sonhar com o vale do Bekah como sonhava que estava na Gonçalves Dias, na confeitaria Colombo, tomando sorvete de manga.
          De uns tempos para cá passou a sonhar com a guerra.
          Ao voltar da Itália, sofrera bastante.
          Não somente porque não podia cumprir a obrigação matrimonial, como ele mesmo dizia, mas porque os pesadelos da guerra ainda o acompanhavam. Eriberto tomou parte nas batalhas de Monte Della Torracia e de Monte Castelo. A guerra também tem seu expediente. O batalhão em que estava nunca lutava de noite. Certa vez, invadiram um acampamento de alemães e os pegaram dormindo. Mas foi coisa rara. Embora tenham aprisionado sem disparar um tiro um grupo grande de alemães, Eriberto viu que a guerra era coisa brutal e sem sentido quando revistou o soldado alemão e pegou a carteira dele e na carteira havia fotos da família, da mesma maneira que ele e seus companheiros brasileiros tinham a foto da família na carteira. O alemão era apenas outro burocrata da guerra. Podia estar ali como podia estar numa repartição pública carimbando papéis. Eriberto tinha apenas dezoito anos e todos os sonhos que não o deixaram sonhar.
         Os soldados faziam turno de cinco horas. De cinco em cinco horas, vinha outra fileira de soldados e eles voltavam para a retaguarda onde comiam a marmita americana com barra de chocolate, comida enlatada e, de resto, maço de cigarros.
Um dia estava na trincheira e do lado dele se colocara outro soldado que havia ganhado campeonato de tiro ainda quando estavam se preparando para a guerra no quartel do Rio de Janeiro. O companheiro queria acertar o alemão que estava no telhado de uma casa. Só se via o capacete negro andando de um lado para o outro. O companheiro de Eriberto queria apenas posição melhor para acertar o alvo. Ele tinha certeza de que o alemão era alvo fácil. Mas de onde ele estava havia uma árvore que dava intermitência ao aparecimento do capacete negro.
         Ei, Eriberto.
         O quê?
        Vamos trocar de lugar.
        E por quê?
       Quero pegar o alemão lá em cima e daqui não tenho visão. Vem pra cá, disse o companheiro, que eu vou para aí.
        Os dois trocaram de lugar. O companheiro de Eriberto é que parecia alemão. Era louro e gaúcho. Entrara na FEB sem nunca ter ido a Porto Alegre. O companheiro de Eriberto só foi conhecer a capital do seu estado no dia em que embarcou para o Rio de Janeiro.
        Eh, bem.
        Trocaram de lugar.
        E logo veio granada e explodiu na cara do gaúcho. O companheiro de Eriberto morreu na hora. Um braço voou longe. Eriberto viu o braço do companheiro voar longe antes de a vista dele escurecer. Estilhaços não deixaram só Eriberto impotente, mas deixaram também Eriberto cego. Ele ficou seis meses num hospital em Gênova. Eriberto pensou que nunca mais ia enxergar. Seria um árabe cego, na Rua da Alfândega, sem mulher, sem filhos, sem mãe, sem seu Anuar, eterno sonâmbulo a vagar pelas ruas do Centro à noite atrás dos seus bagos perdidos e dos olhos que deixou na Itália. O remorso o atormentava, se sentia culpado pela morte do companheiro gaúcho, campeão de tiro, que fora morto em seu lugar.

domingo, 21 de junho de 2020

Potemkim-Kursk, poema RCF




O encouraçado Potemkim*,
ao nível do mar, era a esperança
de bonés jogados ao alto,
confetes no amanhã.
O Kursk, desencouraçado, é a Rússia
com sua máfia de ferro,
tráfico submarino de desesperança,
inflação mercantil de náufragos,
para onde lançar bonés ao alto
se o alto não existe?

O Kursk assombra porque é o destino
submerso, a vontade naufragada.
Antes se fazia poema
para a resistência de Stalingrado;
o Kursk é o épico às avessas,
a derrota da máquina,
a desilusão nuclear no coração russo,
navegar em cemitérios,
o caixão gigantesco de ferro e decadência.


Nota: Em agosto de 2000, o submarino nuclear Kursk afundou. Toda a tripulação de 118 homens morreu. Potemkim é o encouraçado símbolo da revolução russa de 1917.


(imagem retirada da internet)