quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O desejo das formas RCF


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O torno do dia
não tem desenho
que o oriente,
logo o marceneiro
que lhe dá forma
se surpreende
com a planta inexata.

A arte das formas,
na marcenaria da razão
ou na carpintaria das aspirações,
está sujeita à imprevisível
serra que tudo desmonta.

Aqui o mundo consente
a oficina mais cruel:
a que dá a ilusória
certeza de coisa imperecível,
desconhecendo que ao nascer
já traz em seu bojo
o cupim das horas,
a madeira servil de existir,
a imobilidade das coisas,
ilusão de quem se sente
seguro num mundo de formas fixas.



(O difícil exercício das cinzas, 2014)

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Criminalidade, poema RCF


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Sei que me roubo.
Sei que me furto.
Sei também quando me rendo.
Todo dia me assalto
à luz do dia e da vida.
Roubo vários sentimentos
mas o assalto
que ofereço à mão armada
nenhum ladrão de mim
me leva: o passado
que pesa como carteira cheia.
Rufla em mim
o tambor com seis balas.
No horizonte, cavalos
sem olhos habitam
as cocheiras do tempo.
Vítima de mim mesmo
não quero comiseração,
cada dia sou menos,
não há cofre, nem chave,
estou à mercê do gatilho
que disparo ao acordar:
o sumiço do sonho.








(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)









segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Pernas pra que te quero, poema RCF



Minhas pernas são ponteiros sem relógio.
Minhas pernas caminham no salto alto da queda.

Há pernas góticas, finas e torcidas;
há pernas barrocas, gordas e bem torneadas;
há pernas de Gaudí, dispersas e ocas
como a Sagrada Família.

Minhas pernas têm vida angustiada
como um gato miando atrás da porta.


(do livro Andarilho, 2000)

imagem retirada da internet: armitage

domingo, 6 de setembro de 2020

A máquina das mãos por Hildeberto Barbosa Filho


by Igor K Marques

Na fatura do poema há os que se encaminham pelas veredas do puro hermetismo, fazendo dos versos um modelo de linguagem cifrada, quase inacessível à leitura mediana dos que freqüentam o território da poesia. De outra parte, há os que se valem de um trovar claro, não raro linear, centrado numa transparência cuja visibilidade da mensagem paradoxalmente obstrui o fluxo das ambivalências estéticas. Mas há, também, os que sabem tocar o exato limite entre a falta e o excesso, evitando a obscuridade dita inventiva por um lado e, por outro, a facilidade expressiva, logrando, assim, na cartografia poética, o equilibrado encontro de forma e fundo, de linguagem e conteúdo, de estilo e temática.
Observando os poemas de A máquina das mãos, do maranhense radicado em Brasília, Ronaldo Costa Fernandes, devo situá-lo nessa terceira via, considerando a persistência deste traço desde os livros anteriores: Estrangeiro (1997); Terratreme (1998); Andarilho (2000) e Eterno passageiro (2004).
Quero crer que em A máquina das mãos permanece e se acentua a tensão do olhar poético diante da realidade que o cerca, constituindo-se, portanto, uma captação lírica em que pensamento e emoção, à maneira do melhor Pessoa, se fundem num inconsúltil modo de dizer típico da apreensão sem complacência, cética, irônica, corrosiva... Veja-se bem: a apreensão que se elabora pela percepção poética não prescinde dos recorrentes paradoxos responsáveis, a seu turno, pela desautomatização do olhar; mas, noutra clave, não prescinde da função crítica, ou melhor, metalingüística, perante os artefatos da linguagem, resultando daí todo um processo técnico-literário de desconstrução estilística em perfeita sintonia com a pluralidade das motivações desse discurso poético.
É preciso ver, contudo, que a desconstrução estilística, em Ronaldo Costa Fernandes, não se assemelha aos metaludismos em que tanto se comprazem certos segmentos da poesia brasileira contemporânea. A desclicherização, por exemplo, presente em alguns títulos de poemas (“Tormenta dos caminhos”, “Delito corpo”, ”A bela da noite” e “Um para todos”, entre outros) e em muitos versos, como que corresponde ao desconforto e ao pasmo da visão lírica, de sua vez, atenta a pormenores, a sutilezas, a coisas, fatos e sensações normalmente invisíveis e impensáveis, apesar do nutriente concreto com que se manifesta.
Não são poucos os versos em que essa nota lancinante, esse conflito seminal, essa tensão pulsiva, esse sabor acre e trivial da vida se entremostram em sua lúcida verdade e em sua estética beleza. Vejamos alguns: “(...) As correntezas são outro / caminho de água / dentro da água”, em “Tormenta dos caminhos”; “O único crime que cometi foi a vida”, em “Delito corpo”; “(...) a verdadeira roupa / é a veste dos vermes – são eternos”, em “Demônios de Bosch”; “(...) Luto comigo / que é uma luta desigual”, em “Luto”; “(...) Estou cansado de pisar na minha sombra”, em “Danação”; “Não existe a noite, / apenas o escuro que me ilumina”, em “A bela da noite”; “(...) Minha ordem não tem progresso”, em “Bandeira”; “(...) As margens são Penélope sem tapete”, em “À margem”, e “(...) deve haver um cemitério de fatos, / lá, onde todas as coisas – esquecidas ou não - / perduram e se repetem”, em “La invención de Morel”.
Poderia citar muitos outros versos, pois é denso o repertório conceitual e imagético dessa poesia onde o dado metafísico e transcendente, já assinalado por alguns críticos, não se transmuta em mero exercício aforismático ou filosofante. Os elementos cotidianos da existência, com seus materiais sólidos e concretos, tendem a eliminar o foco da frouxa abstração, tornando-a algo palpável, pesar de pura cosa mentale, de criação simbólica, de procedimento estético. Tantos poemas parecem brotar desse princípio condutor, o que, sem denegar a consciência do fazer, convoca, em especial, a poesia de Ronaldo Costa Fernandes, para o paradigma do dizer. Paradigma que se cristaliza, por exemplo, sobretudo na tonalidade do coloquial-irônico a que se refere T. S. Eliot, falando de Corbiére e Laforgue, com um poeta como o pernambucano Alberto da Cunha Melo e, noutra perspectiva, na linhagem de estilo mesclado entre o grotesco e o sublime de um poeta do naipe de Lêdo Ivo.
Para se ter idéia do que estou pensando, leiam-se, particularmente, os poemas “Poema para o suicida”, “Férias”, Às putas, “Lições”, “Vício de concreto”, “Aluguel”, “Em torno de uma imagem de Derrida antes de sua morte”, “1984”, “Poema para Fernando Mendes Vianna morto”, “Samuel Rawet” e “Rodoviária”. Leia-se principalmente este, “Churrasco”:

Da minha janela, vejo fornos crematórios.
As pequenas chaminés se sucedem como um i sem pingo.
Da fumaça que lhe escapa
há humor de tédio, carne e sal grosso.
Durante a semana os campos de concentração,
que são quintais,
se mantêm vazios e sem prisioneiros
além das árvores inúteis
que parem sem que ninguém as olhe.

Nos fins de semana,
começa o sacrifício de bois e rins
e a fumaça se evola, em suas cólicas
cinzas, a passagem das horas,
o riso grotesco dos feriados,
o ritual de queima e álcool,
a embriaguez da vida
cuja ressaca é a morte.

É este é o modo de compor de Ronaldo Costa Fernandes: lírico, de lirismo irônico, dotado daquele sentimento trágico da vida; lirismo à Drummond, corrosivo. Realista e alusivo em seus símiles surpreendentes, em suas metáforas feitas de aço e luar, em seus contrastes verbais carregados de impurezas e epifanias.
Ficcionista, ensaísta, mas sobretudo poeta, se focarmos o poeta como o demiurgo da linguagem, como o que guarda, vigia e zela suas formas, movimentos e possibilidades, Ronaldo Costa Fernandes tem lugar merecido, fora dos modismos experimentais e do facilitário confessional-subjetivo, isto é, no espaço da genuína poesia brasileira.





Hildeberto Barbosa Filho, natural da Paraíba, é poeta, professor universitário e crítico literário.

Crítica de Sérgio de Sá sobre A máquina das mãos

Sérgio de Sá
Correio Braziliense
Recebo em casa e leio na contracapa o poema intitulado “Hopper”. É o suficiente para voltar ao forte e imobilizador impacto (como se diante de um quadro de Edward Hopper) sempre provocado pela poesia de Ronaldo Costa Fernandes (foto), que está de livro novo, com título de ressonância drummondiana: A máquina das mãos (7Letras). Autor de outros quatro volumes de poesia e uma série de obras em prosa, Ronaldo escreve porque precisa sobreviver, porque não poderia ser diferente, escreve porque do contrário não haveria existência. A poesia de Ronaldo oferece a cabeça do leitor em bandeja de prata, tira-lhe do prumo, sufoca, faz respirar, angustia, abre o sorriso em meio a um humor despedaçado, triste, melancólico.
Ronaldo faz poemas legíveis sobre uma erudição sem tamanho, submersa na paisagem desoladora da vida urbana. No posfácio, Hildeberto Barbosa Filho diz que Ronaldo toca “o exato limite entre a falta e o excesso, evitando a obscuridade dita inventiva por um lado e, por outro, a facilidade expressiva”. Equilibra-se, portanto, na corda bamba entre a experimentação e a comunicação.
Escreve sobre as cidades de modo geral e sobre Brasília em particular. Em “Lúcio Costa”, pergunta: “São de rodas teus sonhos?/ Há eixos e tesouras na utopia?/ De que material é feito o desejo/ Existe forma no escape, na fuga, na evasão das avenidas?/ Os aviões com sua turbo-hélice obsedante/ A cidade redonda sem círculo que a encerre”. E a mão continua certeira em “Torre”, “Samuel Rawet” e “Rodoviária”. Ronaldo também escreve “Poema para o poeta Fernando Mendes Vianna morto”.
O que mais esperar da poesia senão essa queda no abismo? A máquina formata os versos que já são pensamentos. As mãos tremem para repetir no papel a mente “que quer ser corpo e que dói”. É dolorido ler os poemas projetados por essa tecnologia humana que luta contra as asperezas da vida sem nunca deixar de senti-las.
Se a poesia ainda fizesse sentido, se ainda mexesse nos sentimentos do mundo, Ronaldo Costa Fernandes seria um bambambã, em seu sentido de autoridade. Remexe dentro da língua e da linguagem, traz novos significados para esse marasmo sem chuva, leva o leitor para dentro de um corpo que somente a poesia promete: coração dilacerado pelo que poderia ser mas não é, pelo rito do nascimento-e-morte, pela sede de saber que o tempo está passando e vivemos tão pouco, tão mesquinhamente, tão perto do afeto de sermos sós e tão pouco. O leitor agradece que Ronaldo cometa o “delito da poesia”, uma poesia que dá cãibra, colocando-nos em outro lugar, distante, dormente e, ainda assim, doce.


O BECO DO CORPO
A febre faz mormaço no meu corpo.
As juntas discordam
o bípede que hospedo.
Mínima queda de braço
derruba o dedo levantado da presença.
O que é víscera
se comporta à flor da pele onde nada medra.
Este calafrio responde ao calor
que insiste em tremer
o que se paralisou.
Nenhuma aspirina cura meu quebra-cabeça.