segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A moeda, poema RCF




Em 1966, o poeta Jorge Luís Borges,
Às onze horas da noite,
E aos sessenta e três anos de idade,
Em seu escritório em Buenos Aires,
Escreveu um poema sobre uma moeda
Jogada fora que desconhecia
O tempo e seu labirinto.
Neste mesmo dia e hora,
Aos catorze anos,
Estava eu num ônibus da Itapemirim
– caixa de homens movente –
Viajando para o nordeste,
Tentando dormir,
Respirando o ar escuro do ônibus,
Na exsudação dos sonhos trepidantes,
E, como a moeda de Borges,
Desconhecendo o tempo e seu labirinto.


(do livro Andarilho, Ed. 7Letras, 2000)

imagem retirada da internet:moeda romana sec. II a.C.

Poema quase erótico, RCF


Di Cavalcanti



A visão dos teus quartos




O parlamento do corpo
na assembléia de membros,
tua bunda,
tuas duas luas nuas,
o sistema solar do assoalho,
os olhos chineses da persiana,
e, tu, na ventriloquia do telefone.

Tu, que és distúrbio,
multidão de uma só pessoa,
passeata de sopranos e bombardinos,
me lanças coquetéis molotovs
e me incendeias com a gasolina dos teus cheiros.

Os poros como ventosas,
os pelos se eriçam como línguas tremelicantes.
Cai a chuva amarela da luz dos postes.
Meus dedos têm memória:
tocam o espinho de carne do teu seio.
Teu biquinho do peito
como o segredo do cofre,
vou rodando até fazer clic
e aí teu coração – ou o tesão – se abre.



(do livro Andarilho, Rio, 7Letras, 2000)


imagem retirada da internet

domingo, 20 de setembro de 2020

O viúvo, início do romance




  


Sei que, no dia seguinte, a cegueira será ver em demasia. A luz do sol vai ferir os olhos. Tudo brilhar demasiado: os carros no estacionamento, o chão cinza de cimento, as paredes marrons, as árvores excessivamente verdes. A claridade é o diabo de uma agulha e os ruídos, por mínimos que sejam, entrarão pelos tímpanos fodendo meus nervos. Preciso trabalhar. Eu atrapalho? O que você acha? Há mofo por tudo quanto é canto. A empregada está aí pra isso. D. Benedita, ela ainda está contigo?
– Não era teu desejo?
– Tenho frio.
A casa não consegue dormir. Quando está com insônia, os olhos inchados e vermelhos ficam de pálpebras baixas, mas não se fecham. Todo um torpor, dores, músculos cansados tomam a casa. Os livros sussurram indistintamente. Não querem dizer nada, são balbuceios, murmúrios, apenas sons sem sentido. Querem se fazer presentes, me solicitam, mas não posso atendê-los. De que adianta o diálogo mudo com eles? Não consigo ler. Por que não dorme? Ora, não vê, a casa não deixa. As teclas estão dentro de mim, não posso escrever, oh, não, não posso escrever com teclas que estão dentro de mim.
 – Os alunos?
– Continuam lá.
– Você está infeliz.
– Estou é inquieto.
Ando pelos corredores, o perigo de Lídia me acusar. Por que isso, por que aquilo, a lengalenga de sempre. Lídia não pode entender de solidão. É difícil para uma mulher como ela perceber porque o homem tem menos facilidade de viver só. A casa bufa. A agitação das narinas, o gosto do olfato, os odores da casa em funcionamento. Meu pai era um homem de cabelos fartos negros o que lhe faltava era argila o que dizes? os mortos somos nós somos nós somos nós a noite tem seus motivos, ora se tem. Se eu estivesse contigo, iríamos pra cama. Uma boa foda é o melhor calmante. Você acha que não tenho lembrança de gozar?
– Não quero discutir orgasmo com os mortos.
– Grosseiro.
Agora as cortinas balançavam ao vento. Fechei a janela. Ela ficou lá fora, bateu no vidro, mas como o soco dos mortos é silencioso, não ouvi nada, apenas vi o vento movendo as plantas da jardineira.




(do romance O viúvo. Brasília, LGE, 20015)