sábado, 24 de outubro de 2020

O abutre albino, poema RCF





A noite dorme só com um olho aberto.
Na caserna do pasto
se perfilam as árvores-soldados
vestidas de verde oliva.


No campo, nada adormece
além dos homens e das pedras.
O sono reparador das pedras:
inexato e fluido.
O sol, ao se pôr, recolhe as tralhas
– panelas velhas de alumínio do corpo,
restos do couro da frustração,
a bolandeira gasta da fome –
e se acocora atrás da mata
à espera de outro dia
quando sai a lume
e espreguiça seus dedos rosa que Homero pintou na Odisséia.

O sol campesino é marcial,
marcha nos trilhos do céu,
um vagão só fornalha.
Ao se pôr, o sol não se deita
nem puxa o cobertor de veludo negro.
Fica ali mesmo, sem sono.
Por isso o sol é triste e bufa no espetáculo de fogo
e queima com dó no peito.
Barítono da epopéia dos nadas,
tenor do deserto,
soprano dos sentimentos escusos.
O sol é o avesso
com seu monóculo cego.
Linear e bacharel,
doutor em cruzes,
magistrado das plantas,
falastrão no tribunal das urzes.
No céu despido, voam as aves negras de rapina
sob a vigilância do abutre albino:
o sol, imóvel, sobrevoa a presa,
maligno e único com suas garras de hidrogênio.

(do livro Terratreme, Prêmio da Fundação Cultural de Brasília)

imagem retirada da internet

Poema para os 400 anos de São Luís (inédito)

















Teus rios são feitos de água
mais intestina: a água da terra
revolta que se move num
enorme estômago de areia,
barro e água, um tempero
que nem franceses, nem portugueses,
muito menos holandeses,
puderam acalmar na azia dos tempos.

Tenho em mim um bumba-meu-boi
numa caixinha de música:
a cabeça roda os pinos e os brincantes
bêbados se apresentam mambembes
no pátio da casa do desembargador.

Com os anos, rolei mundo,
esta outra caixa sem música,
que vai silenciando a memória,
e os casarões de pé direito alto
arquitetaram saudades e fotos
nos azulejos da infância
que se despregam fácil
e são substituídos
                        por outros falsos:
são gente de outra época
que se prega na parede dos dias.

Meu patrimônio são duas peças de roupa:
uma de marinheiro
com que posei, na fotografia, de órfão
e outra de índio
para um eterno carnaval
em que ia contra a corrente
de gente e versos,
que são correntes de gosto
e compostas de vazio e tombamento.

Tenho quatrocentos motivos
para ser uma cidade
em constante viagem,
sem paradeiro que a sossegue
e sem destino que a cumpra.

8.09.2012

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

O moinho e a bicicleta, poema RCF



Os olhos pisados
miram as pegadas
daquilo que não se pode ver.

E o moinho pervertido,
em vez de grão, mói sombras.
Gira a bicicleta absurda:
rodas de adeus redundante,
guidão de vontades escuras.

Este vestíbulo não antecede a nada
e não me ante-sala para ninguém.



(poema de Eterno passageiro, Ed. Varanda, Brasília, 2004)
 
imagem retirada da internet: magritte

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A maçã no escuro, poema RCF


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O jóquei monta hipóteses,
a isquemia dos azarões,
chicoteia pavores.
O cavalo bufa músculos.
“Monto, logo existo”.
Por que o jóquei flutua?
Quanto menos homem houver,
maior o prêmio da sobrevivência.

Aposta nos cascos que cavam o ar
– as pules são roletas de quatro patas – ,
o cavalo, nas pistas reiterativas,
linhas de trem,
deseja a paz quadrada da cocheira,
ali donde parte e chega sem sair do lugar.

(foto retirada da internet: exame.abril)

A máquina das mãos no jornal O Estado de Minas


ESTADO DE MINAS GERAIS

André Di Bernardi Batista Mendes



Ronaldo Costa Fernandes marca seu lugar no cenário da poesia contemporânea

A Editora 7 Letras acaba de lançar A máquina das mãos, do poeta, romancista e ensaísta Ronaldo Costa Fernandes. A poesia do maranhense radicado em Brasília transita e percebe o trágico a partir do simples, do cotidiano. Sua áspera letra já nasce torta, desce da descoberta das inúmeras e indissolúveis fraudes de que é feita a tessitura do duro dia-a-dia, que não concede espaço e é, sempre, amplo de controvérsia e clausura. Mas, transido, fortalecido pelo mistério de um olhar extremamente sensível, são grandes os nacos de fascínio que encontra na gravidade que desliza, por exemplo, das telas do pintor americano Edward Hopper: “A vida como um quadro americano/ do qual não podemos escapar”.


Sua linguagem e seu estilo simples atingem façanhas de desnorteios (“Entre o sim e o não/ não existe o talvez./ Entre o sim e o não/ existem as palavras cruzadas’’) e também concede, oferece, com a desfaçatez e o descaramento de um bandido consciente, o estímulo necessário para o primeiro e extremo passo rumo aos desatinos sobre os conhecimentos e desconhecimentos da sempre estranha e inalcançável natureza das coisas. Tudo no seu estado mais bruto. “Eu não aprendo a natureza./ Pergunto uma e outra vez seus nomes,/ e, na chamada, não me respondem.” Pobre leitor, pobre poeta que se debruça, louco para “sabatinar as árvores”, as “buganvílias desavisadas” e as “quaresmeiras duras”.
Não há vanguarda que dê conta do recado no inusitado âmbito poético. O cabresto das instituições, a cara fechada das academias, a moda dita, exige, com seu chicote ridículo, um poema curto, enxuto, low profile. Aí chega um artista, um escritor contemporâneo, e apresenta os seus longos poemas simples, adivinhando, arbitrário, provocativo, que o futuro pode ser um corredor: “Que dia virá o futuro/ com seu longo pescoço de ânsia?”. Pessimista, cínico, Ronaldo descortina um futuro simplesmente branco, branco como uma tela em branco, branco como o papel pode ser apenas branco.
Os bons poetas marcaram um encontro com a vida. E Ronado chegou na véspera. Mas ele também encontrou nestes tropeços a sua boa parcela, a sua cota de danação pelo caminho. Em seu livro, Ronaldo visita os demônios de Bosch (“Há morte e morbidez no amor’’); adula o seu roteiro de esquecimentos (“Tudo é um imenso galpão vazio”); faz poema para e sobre arames (“Há mãos farpadas/ que não ouso tocar”) e não deixa de corajosamente encarar a dor extrema, inigualável, ao tentar decifrar o alfabeto dos suicidas, num dos poemas mais belos e incisivos do livro (“Suicídio é o cano de escape/ com que respiramos,/ a fuga para dentro de si/ como o peixe que pula/ para a prisão do ar livre”).
Não é preciso paciência para ler os poemas de A máquina das mãos. Não é preciso condescender, anuir para encontrar fruição. Dono de um “olfato dos que cheiram a finitude das coisas”, Ronaldo dá notícia dos extremos que sobram. A sua poesia é feita de pequenos intervalos, de portos, de refúgios sempre provisórios. Nestas brechas cabem carros sem gasolina, rodoviárias onde inexiste a delícia da viagem, algaravias desenfreadas, cartas, a dura vida das putas, becos, febres, mormaços, fotografias e a dimensão inexata de uma alma que se revela linear, mas ambivalente, sempre por meio da dor. No ordinário Ronaldo descobre “a agulha da beleza”, para ele, “a realidade só não acusa o inconsciente”, que aí já seriam outros quinhentos.
Os poemas de A máquina das mãos, em sua maioria, padecem de uma melancolia que se justifica na medida em que revelam a face crua do, digamos, real verdadeiro, que, despido das bobagens de um lirismo fácil, revela que qualquer canto quase sempre desafina, que a verdade não existe, que existem margens que impressionam pela brutalidade e pelo desencanto. Entre a falta e o excesso, Ronaldo sabiamente cobra a fatura e aprende a rir de tudo e de si mesmo, deste seu, deste nosso “ato vazio de nada pegar”. Carece de poesia, pode ser leve o breu que nos envolve.
Como bem anotou Hildebrando Barbosa Filho, no posfácio do livro, a poesia de Ronaldo é também feita de “impurezas e epifanias”. A tormenta das estradas fornece um amplo repertório e munição para uma voz que se estende para que, algum dia, algumas janelas e todas as gaiolas se abram. Ronaldo apura o seu olhar e o seu canto poético que pretende ser, apenas, “um caminho entre caminhos”.



A MÁQUINA DAS MÃOS
De Ronaldo Costa Fernandes
Editora 7 Letras, 104 páginas, R$ 28


Canto do castigo
(trecho)

Há dias que não consigo
aprender minha pouca matéria.
Só tenho um ano
repetente, oclusivo, recorrente:
o ano em que me reprovei.
Já fui mais
quando tinha menos corpo.
Se o corpo se alonga,
quem negará que a mente
ganha gordura, extensão e músculos?



imagem retirada da internet: Hopper, summer evening

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

À margem dos rios secos, poema RCF




Sempre me impressionaram os rios secos,
as margens olhando para o leito de areia,
o suposto fluir do que um dia existiu.
Depois, se os rios correm para o mar,
que mar seco é esse para onde corre o rio seco?

Sem a água do rio,
gozo úbere e fértil,
esterilizam-se.

Estão separadas uma da outra
por uma hipótese baixa, central,
ora, se a água
é quem cria os rios,
que fazem as margens desprovidas
de sua função?

As margens são penólopes sem tapete,
ruminando o tempo, a secura, o tear;
são visionárias e persistentes,
sabem que um dia as águas voltarão
e, por isso, entrarão em cio,
recompensadas pelo espetáculo de vigiar o nada,
o pó, o rastro de praia,
o solado de greta de um leito que imita a vida.

(A máquina das mãos, Rio: 7Letras, 2009)

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Espreita, poema RCF


 


Na cama, ouvimos gotejar o silêncio.
Entre lençóis apenas se escuta
o barulho de luzes
acendendo a noite.
As ruas caminham
com seus passos de paralelepípedos
assustados com a chuva,
o corpo curvado da ladeira
para se esquivar da acupuntura
das agulhas molhadas.
O quarto sobrevive à queixa
e esperamos, indóceis, o silêncio escurecer.




 (do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012.)

domingo, 18 de outubro de 2020

Cartão poético II

 




do blog www.algumapoesia.com.br do poeta Carlos Machado.