sábado, 31 de outubro de 2020

Perguntas infantis para um coração baldio, poema RCF




Quem colocou a vitrolinha
dentro do passarinho?

Quem construiu um terreno
debaixo do mato baldio?

Quem cura as feridas
que fazem as mulheres sangrar?

E, por fim, quem deu corda no coração
e o faz um vitrolinha de duas notas,
um terreno cheio de dores baldias
e que menstrua a cada batida
como se um óvulo do tempo
se desprendesse do ovário das aortas?



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)
(imagem: rebecca drautemer)

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Salas de espera, poema Matadouro de vozes






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A espera tem várias salas.
As ruas estão cheias 
de antessalas. 
Em cada tabuleta 
se apresenta uma solução 
para a moléstia do dia.

A pior antessala não tem 
atendente.
Quem sabe do outro lado
inexista quem nos atenda
se obscura na especialidade
dos absenteístas.

Minha especialidade 
é ser paciente 
e nunca me enervar 
com as ausências.

Uma boa porta 
é feita metade de madeira 
e outra metade de surdez e dúvida.





A prisão de Homero, conto RCF




Foi inesperadamente, num dia de semana ordinário, que Homero pediu para ser preso. Como não havia cometido nenhum crime, passou por louco dentro da delegacia. E foi motivo de chacotas entre os policiais, ainda que acostumados a malucos e, principalmente, a certos elementos que, sabe-se lá a razão, gostavam de assumir a culpa por um delito que não cometeram.

Mas a história de Homero era diferente. Os doidos que se apresentavam culpando-se eram exibicionistas ou tinham outro tipo de deformação mental. Logo caíam em contradição e o delegado os ameaçava com falso testemunho e aí, diante de uma transgressão verdadeira, como num passe de mágica, os falsos culpados assumiam a mentira.

Homero sempre foi um homem pacato, dono de armarinho, morando em subúrbio, vida reta, nenhuma amante. Nunca cometera deslize: devolvia dinheiro encontrado na rua, se oferecia a depor quando assistia a um acidente de trânsito, enfim, era a virtude em pessoa. De tão virtuoso é que não pôde aceitar o crime que cometera.

O sócio de Homero, companheiro de muitos anos, morrera repentinamente. A viúva não se interessou pelo negócio, pediu sua parte. Homero fez as contas, comprou a parte do amigo morto. Aí é que começaram as angústias de Homero, que enrolou a viúva nas contas. O que mais o incomodava era a viúva, amiga da família, continuar a freqüentar a casa dele. A cada visita a viúva representava a prova viva – e falante – do crime que cometera. Ficara com pouca coisa, reclamava que o marido durante a vida fora unha-de-fome e, morto, lhe deixara sem pensão.

Meses se passaram e Homero imaginou que devolvendo o dinheiro para a viúva conseguiria aliviar a culpa. Inventou uma história intricada.

Que taxa? perguntou a viúva do sócio.

Ora, o importante é que o dinheiro eu vou depositar na sua conta. É melhor nem entender essas coisas financeiras do governo: taxas, multas, cobranças indevidas, ressarcimento. O governo também erra e às vezes corrige o erro. Não está feliz com o dinheiro que vai receber?

A surpresa de Homero foi ver que a devolução do dinheiro não aplacava a consciência pesada. Afinal cometera o delito, o dinheiro que por direito dava à viúva não o inocentava do crime. Tinha que pagar pelo crime que cometera.

Foi tudo isso que Homero contou na delegacia e o delegado não dera bola. Sem tribunal ou juiz que o condenasse, Homero decidiu dar pena para si mesmo.

Confessou-se à esposa que não acreditou no que ouvia.

Bobagem, disse.

E como Homero insistisse, ela reprovou.

Deixa de ser idiota. E, além do mais, reparaste o erro. A viuvinha não está feliz? Então pára de maluquice que temos três filhos pra criar.

A pena que Homero se deu foi fazer de seu quarto uma cela. Mandou construir grade, tirou todos os móveis, colocou um catre e, quando achou que o quarto tinha cara de cadeia, trancou-se nele. Além da televisão, desfez-se de qualquer luxo. E mesmo a televisão, Homero a justificava: tinha direito a prisão especial por ter grau universitário. Estava na lei.

O cotidiano de Homero era desesperador. Comia frugalmente, recusando qualquer tentativa da mulher em oferecer a ele pratos suculentos ou guloseimas. Acordava cedo, fazia ginástica, via um pouco de televisão, lia e quando olhava o relógio eram apenas dez horas da manhã. Como o tempo rendia! Depois ficava olhando para as paredes nuas onde num canto fazia as marcas dos dias – como qualquer prisioneiro – que faltavam para sua liberdade.

Nada o demovia. Nem o pedido dos filhos, dos amigos, dos parentes. Era um preso exemplar. Tinha em mente que assim disciplinado podia ter a pena reduzida como faziam com os presos de bom comportamento. Assim ia vivendo, encarcerado, em paz com a consciência para desespero da esposa que teve que assumir o armarinho em lugar do marido.

Daqui só saio em sete anos, dizia anunciando o tempo da condenação.

Homero já cumprira seis meses de pena, quando teve uma idéia. Hesitou muito antes de definir-se. Afinal de contas, a idéia, embora contraditória, era uma idéia de prisioneiro – ele se justificava. Depois de tanto vacilar, por fim se convenceu. Iria cavar um túnel.

É só cavar com a colher todo dia um pouco, esconder a terra e, mais três meses, consigo chegar do outro lado da rua, arquitetava. E, pronto, liberdade!

(imagem retirada da internet: lala.blog)

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A doença do mundo, poema RCF




Anda convalescente
e sua doença é o mundo.
Os sintomas de que sofre
do mal do mundo
aparecem no exame
de sangue dos jornais.
Os rins do mundo
urinam o cáustico
e as pedras do caminho.
Sua tosse é seca,
semiárida,
cheia de mandacarus,
zabumbas e mangues.
Há tempo de plantar o estado de sítio
e tempo de colheita dos  redemoinhos.
Seus pés de barro,
suas mãos pesadas,
seus dois braços esquerdos,
seus nervos de aço oxidáveis
sua cabeça mole,
tudo o impede
de se curar do mundo.

(de O difícil exercício das cinzas, 2014)
can dagarslani

domingo, 25 de outubro de 2020

A famélica viagem do homem, poema RCF




 


O gado caminha seu destino,
mastigando o caminho
como um aspirador de grama.

O gado e seu sacrifício,
esquartejado na mesa,
a famélica viagem do homem
no pasto e antipasto
da carne que devora carne.

O gado é uma poesia mansa
e gorda que passeia sua morte.
Quem disse que a poesia está
na leveza e nas plumas?
A poesia bovina marcha 
a paciência e derrota
encarceradas na amplidão
dos pastos das horas,
a ruminação da entrega
pacífica à vida
ao ar comprimido
– mas dito livre –
das pradarias da servidão.


(O difícil exercício das cinzas. 2014)

Um homem é muito pouco - 39








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            Mudei-me para Santa Tereza. Moro num quarto de um apartamento de três quartos. É uma república de estudantes. O único não estudante ali sou eu. A minha vizinha de quarto é Marilyn Monroe. É claro que a minha vizinha de quarto não é a Marilyn Monroe. Fui eu quem inventou o apelido para Sônia. Ela é branca e pinta o cabelo, tem o rosto redondo e embora não se pareça com Marilyn Monroe gosta de imitar os gestos de celuloide de Marilyn e fala com a voz radiofônica e em preto e branco de Marilyn Monroe. Não sei se Santa Tereza é o melhor lugar para me esconder. Creio que não. Há de tudo num bairro como Santa Tereza.
De noite ouço o barulho da cidade que não dorme. Alice reclamava do barulho da Prado Júnior. Agora vejo que não é o barulho da Prado Júnior, mas o barulho da cidade. A cidade é imensa caldeira. Uma caldeira não pode esfriar porque racha. O Rio não pode esfriar porque racha. Uma cidade rachada é uma cidade impraticável de morar. Por isso o estômago do bicho cidade trabalha de madrugada e do alto do morro de Santa Tereza posso ouvir as entranhas desfeitas do bicho cidade.




(do romance Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)