sábado, 2 de janeiro de 2021

Um homem é muito pouco 25



Imagem relacionada

         Há outro tipo de frequentador do bar do Vicentino. O sujeito que se aposentou da vida. O sujeito que se aposentou da vida não é necessariamente um sujeito velho, apenas deixou que o corpo dele desse expediente. O sujeito aposentado da vida não tem fundo de garantia, nem pensão. Geralmente vive à custa de mulher balzaquiana encalhada e com furor uterino, muitas vezes casada, ou vive de pequenos bicos e trambiques. Esse cara propriamente não tem a alma vadia e muito menos a alma dele chora pelos cantos. É um sujeito aleijado. Não no corpo, mas na alma. A alma de um sujeito que se aposentou aos vinte e três anos é alma que tem a perna da alma quebrada, os pés da alma quebrados e as mãos da alma inertes e perdidas. O corpo mesmo só serve para lhe dar prazer. O sol da praia, a cama das mulheres, um cigarrinho do que quer que seja. Se o corpo se esquece de ficar sadio e adoece, ele não quer mais o corpo. O corpo só lhe dá prejuízo. O corpo come, o corpo precisa de cama para dormir, o corpo tem que pagar roupa. É certo que ele gosta de dar roupa ao corpo, mas não gosta de gastar grana para o corpo deixar de ser corpo que é quando o corpo dorme. O sujeito que se aposentou da vida é vaidoso, gosta do corpo bronzeado que ele passeia pelas areias da praia. Drogado, gostaria de jogar o corpo fora. Não o sente. O corpo só dá gasto. Até que um dia o corpo também estará gasto. O corpo e suas despesas. Mas sabe que a alma não se deita com as mulheres maduras e gordas que fodem com ele e lhe dão grana. Sabe que a alma não lhe dá o prazer da droga. Sabe que a alma não toma sol.

            Outro tipo que aparece no bar do Vicentino é o sujeito que quer fazer câmbio de Dolores, como chamo o dólar. Como na região tem alguns hotéis e sempre estão cheios de gringos, Vicentino descobriu que podia ganhar a vida como banqueiro. Banqueiro de dolores. O gringo chega, pergunta se há cambiô e Vicentino já responde com a cotação do dia, vinte para a venda, quinze para a compra. Todo bar é um câmbio negro. A energia que emana de um bar é uma energia escura, cheia de ácido úrico, bêbada. Há algo bastante escuro no cambiô de dolores.




(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Razão e sensibilidade, poema de Matadouro de vozes


 

 




A razão, reta em seu esquadro,

calçada com as botas do cálculo,

e a geometria das certezas,

visitou-me ao sol da meia-noite.

 

Arguiu-me sobre minha temperança.

 

Antes da resposta,

pairou exata,

exalou a matemática da lucidez

e vangloriou-se

da física de suas poucas paixões.

 

A madrugada das palavras

alvorecia algumas velas

que se consumiam

na cera indecisa do bruxuleio.

 

A raiva,

que não se contabiliza

na acuidade,

tomou súbito a razão.

Rogou-me a praga

da literatura

a fim de que padecesse

o engano dos ingênuos

e insanidade dos crédulos.                            

 





 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Vida e ficção em O apetite dos mortos, Hugo Almeida

Resultado de imagem para otto dix
(publicado no sãopauloreview.com.br)
Autor de vasta e premiada obra, Ronaldo Costa Fernandes publicou neste ano de 2019 dois novos romances, O apetite dos mortos (Jaguatirica), mescla de vida e ficção, e Vieira na ilha do Maranhão (7Letras), realidade romanceada. Nascido em 1952 em São Luís (MA), o escritor cresceu e se formou no Rio de Janeiro e, depois de ter vivido quase uma década em Caracas (onde foi diretor do Centro de Estudos Brasileiros na Embaixada do Brasil), mora há mais de 20 anos em Brasília. Sua obra inclui romances, contos, poemas e ensaios. Com O morto solidário venceu o prêmio Casa de las Américas em 1990, livro lançado aqui pela Revan em 1998. Conquistou outros prêmios expressivos com ficção e poesia. Autor de O narrador do romance (1996), é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).

O apetite dos mortos cativa desde a bela capa, imagem da agência Shutterstock em cores que fazem lembrar o Guerra e Paz de Portinari. E de certa forma o romance trata de uma espécie de guerra, uma guerra de egos entre famílias, amigos e desafetos, e da busca de um possível sossego. Narrado em primeira pessoa, em linguagem fluente e agradável, mas nunca banal, quase sempre em curso sinuoso como o fluxo da memória (“Seria uma cobra o ato de lembrar?”), traz as andanças físicas, afetivas, aflitivas e intelectuais de um rapaz aspirante à carreira literária, no seio de uma grande família sofrida e dividida, envolta em crimes sem solução nem castigo, fugas, desencontros, tudo misto de fatos, loucura ou devaneio.

Alguns exemplos: uma mulher que não acredita na morte da filha a imagina enterrada viva pedindo “mãe, mãe, vem me buscar”; um homem imagina-se perseguido e acaba matando o perseguidor com dois tiros, crime à luz do dia que confessa, mas ninguém viu; uma viúva recusa-se a pagar o aluguel do apartamento em que morava e o abandonou por causa do aparecimento do marido no imóvel. O apetite dos mortos é insaciável, mas os vivos também têm sede de vida. Em permanente conflito existencial, o rapaz ouve de seu analista que no seu caso não existiam aberração ou desejos retorcidos, “mas era algo daninho, o roer em silêncio do cupim”. Ele chega a se confundir com o entorno. “Difícil delimitar onde acabava meu corpo e começava o mundo. A realidade era extensão dele”. Lembra-se saudoso do pai, advogado íntegro: “Não estudei Direito para defender patifes”.

Sempre preciso e poético (“Ele, moreno; ela, alourada. Ele, alto demais; ela, exata”. “Um porte inglês, o paletó cruzado”), o texto traz ecos machadianos: “O navio partiu numa tarde chuvosa, poucas pessoas no cais, dez ou onze lenços apenas no convés da embarcação”; “Renata fizera dezoito anos, não era feia, tampouco bonita”.

Não falta humor no romance. O garoto era admirado por uma professora, que, abalada pelo abandono do marido (um garimpeiro bêbado), chama o aluno em casa.

“Quando entrei, ela disse:

– Camõesinho, recita pra mim Os Lusíadas.

E lá comecei:

– Por mares nunca d’antes navegados passaram além da Trabobana.

Ela revirou os olhos, o rosto enrubesceu, uma baba saiu do canto da boca, dei o fora da casa, nunca mais voltei lá.”

Uma história do Brasil contemporâneo, “num relato de balanço ou acerto de contas”, com a presença de escritores conhecidos, nem sempre nomeados, às vezes apenas sugeridos, como Ana Cristina César, Nelson Werneck Sodré, Bernardo Élis, Manuel Puig, Moacir Werneck de Castro, Gianfrancesco Guarnieri, Shakespeare, Nietzsche, Umberto Eco etc., O apetite dos mortos atesta a riqueza da literatura brasileira atual. O romance histórico Vieira na ilha do Maranhão, sobre a saga do jesuíta em defesa de índios e escravos, é tema para futuro artigo.

*

Hugo Almeida é autor de vários livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Prêmio Bienal Nestlé-1988), e os infantojuvenis Meu nome é Fogo (Dimensão) e Viagem à lua de canoa (Nankin). É doutor em Literatura Brasileira pela USP, com tese sobre A rainha dos cárceres da Grécia, romance de Osman Lins.