sábado, 16 de janeiro de 2021

Em torno a uma imagem de Derrida pouco antes de sua morte, poema RCF






Recuso a voz verde de Derrida,
os olhos de estanho,
a pele ausente que pode rasgar-se,
plumagem de pássaro último.
O câncer está prestes a mudar sua pele
– esta, a plumagem de gesso envelhecido,
a pele de terno com que se veste o morto.
Cada vez que respira,
a marreta do matadouro miúdo
ameaça o cérebro filósofo.
Carrega consigo o pequeno cadáver
de fígado, rim ou pulmão
que morreu antes dele.
Logo sairá do cinema da morte.
Entramos numa grande sessão de cinema
que dura vinte, cinquenta ou setenta
anos e, de súbito, em vez de as luzes
acenderem, tudo se apaga.


(do livro A máquina das mãos, 2009)
 
(imagem: chagall)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O viúvo, análise de Zina Bellodi e outros

Resultado de imagem para otto dix




(do livro Memorialística. São Paulo, 2012. Magaly Gonçalves, Zélia Thomaz de Aquino)

            Em O viúvo temos a memória familiar do ângulo de visão do homem que protagonizou uma história, e que nos leva a participar de sua vida interior, não deixando claro o limite entre o sonho e a realidade.
            A obra de Ronaldo Costa Fernandes é uma narrativa feita pelo viúvo de Lídia, que morrera após relativamente longa doença, durante a qual o marido fugira a seu convite para fazer amor, com nojo. Ele é professor na universidade e tem a companhia do jardineiro José e da criada Benedita. Quando José morre, Benedita assume o cuidado das plantas. Durante certo tempo o viúvo mantém um caso com a economista de um banco, Fernanda, que tem dois filhos. É perseguido pelo marido dela com o carro e, numa perigosa manobra, sofre acidente, ficando seis meses em coma, quando Fernanda o abandona. Num certo momento passa a cuidar de Benedita, agora doente, levando-a ao médico. Ao fim pára de trabalhar, em condições não muito claras.
            O grande problema do viúvo é “sentir o corpo”, pois vive em completa dissociação, perdendo até a sensação dos pés como algo seu. É como se o corpo fosse estranho e com ele não se pudesse ligar. Esta sensação, de caráter físico, pode ser interpretada como a contrapartida de seu característico desligamento das pessoas. Realmente, a ideia que se tem é a de que ele não consegue estabelecer com o outro, seja ele quem for, uma relação verdadeiramente significativa.
            Esta incapacidade de relacionamento humano efetivo (traduzida na sensação de não sentir o próprio corpo) é acompanhada de uma certa incapacidade de ver na vida algum sentido.
            É na relação com Lídia que o viúvo conseguia tornar real o próprio corpo, de outra forma estranho:

         Aquele corpo para mim era um corpo inédito. Meu corpo também era inédito. Meu corpo não era inédito com Lídia. O quarto não existe. A gente inventa o quarto. O quarto não é feito de móveis ou de espelhos, cama, console com som. O quarto se resume a dois corpos. Certa vez agarrei Lídia na escada. Ali inventei o quarto.[1]

            O viúvo sente a realidade do próprio corpo e até “inventa” fatos da realidade na relação com Lídia. Esta relação parece, assim, como um possível clarão a iluminar uma vida de outra forma sem sentido. Na fuga ao marido de Fernanda, o viúvo sente mais claramente a falta de sentido que permeia sua experiência:

         (...) Saí correndo, desembalado, o carro rangendo pneu na curva, derrapando. A culpa não foi de Manfredo. Eu sabia muito bem o que estava fazendo. Senti o desejo de me matar, de abandonar não a perseguição de Manfredo, mas uma perseguição maior, a própria vida. (...)[2]

            Fica claro que se trata de alguém cuja luta vital é a busca de um sentido que lhe escapa constantemente, um sentido que talvez pudesse atingir com Fernanda, mas esta é uma relação condenada ao fracasso.
            No hospital, diante de Fernanda, mas sentindo-se mais perto de Lídia, o viúvo admite que perdeu o rumo, o que aparece, metaforicamente, no acidente com o carro.
            Enquanto o viúvo procura ansiosamente um sentido vital que se lhe escapa, sua obsessão volta-se para a ideia de limpeza, fato que é recorrente na narrativa. Não se trata, propriamente, de desejar a limpeza obsessivamente, mas antes de senti-la com intensidade desproporcional. É como se os objetivos se limpassem a si mesmos de maneira ostensiva.

         Duas ou três semanas depois, a casa entra em rotina. E se limpa, se asseia, se higieniza e até quer mostrar vaidade. Não há espelho que baste para a casa que rebrilha de tanto lustra-móvel, limpador de vidro, detergente e sapólios.[3]

            Se as coisas são personificadas, as pessoas, às vezes, aparecem quase que reificadas, como acontece numa menção à D. Benedita:

         D. Benedita não faz supermercado. Cada semana escreve garranchos que viram azeite, arroz e macarrão. As palavras na cabeça de D. Benedita também devem aparecer como garranchos. Difícil decifrar o que a mulher pensa, caso pense, porque a cabeça de D. Benedita deve ser como papel em branco.”[4]

           
A personificação da casa é seguida, em outro contexto, da animalização do narrador:

         Já pensei em mudar-me, mas nunca sairei desta casa. Ela é o bicho hospedeiro, sou o verme que dele se alimenta. Às vezes penso que fui feito para morar aqui. Não questão de destino, quando procurei desabava de velha e inabitável, fiz a casa tanto a meu gosto que desconfio que ela me atraiu para lhe dar a forma que me pediu.[5]

            Ao contrário de outras obras, principalmente a partir do século XX, cuja tônica é a expressão da falta de sentido com que a realidade se apresenta, mas numa imagem que nenhuma tem a acrescentar, aqui temos uma aguda, profundamente sentida, visão de tudo isso, mas numa criação expressiva que não se esgota na simples negação. É do “sem sentido” aparente do real que brota a mensagem mais forte da obra. Isto, desnecessário dizer, pela maneira como ela se organiza e se realiza numa linguagem “buscada” de profunda expressividade. É o contrário de outras obras que se passam por complexas, mas que, na verdade, pouco conseguem construir.

           

            Em primeiro lugar esta é uma obra de 2005, que reflete os males e as dores que marcam a literatura desde o século XX mais claramente (já que desde sempre existiram). A angústia traduz-se neste livro pela sensação de claustrofobia que parece atormentar o herói e que se transfere para o mundo que o cerca, como diz Salomão Sousa:

         Por tratar-se de personagem que padece das doenças da pós-modernidade, o viúvo não se limita a ser doente – ele adoece o mundo ao seu redor. A realidade perde as suas funções inanimadas, assumindo os desastres que ele mesmo vem construindo.[6]     

            Essa sensação é o que problematiza todas as relações humanas na obra. A visão aqui descrita pode ser claramente constatada ao longo do texto, como no que se segue:

         Estou na garagem, transformada em consultório. O consultório de vozes encarceradas. Ali sim estão as vozes em seu estado primitivo, porque saem, mas não saem, ficam ali, depositadas, aéreas, esparsas, presas para sempre no ouvido da doutora. A garagem é um ventre de vozes, estão amortecidas, esperam que nós a busquemos, há um repertório também de outras vozes, viciadas, lidas, eruditas, que a doutora recolhe do ar, borboletas rebeldes, que se cruzam formando outro bando de borboletas.[7]

            Se quisermos escolher uma passagem em que mais claramente aparecem as características aqui arroladas, podemos escolher o capítulo 6 na sua íntegra, onde há uma descrição da casa que exprime poderosamente a sensação de claustrofobia (nos quartos), sensação que não é transmitida pela cozinha, para onde convergem “luminosidade, amplitude e vida”[8] o que, normalmente se esperaria da sala. É na cozinha que ainda existe vida:

         (...) A vida vicejava na cozinha como planta adubada. As paredes porosas exalavam não apenas o cheiro forte dos temperos, exalava ela mesma cheio de existência, coisa viva, poderia suar ou gelar-se.[9]

            Enquanto isso “a sala acabrunhava-se numa soturnidade úmida” [10]
            A sensação de ser o herói alguém desconectado, fica afirmada com a menção ao telefone, como única forma de ligação com o mundo.
            A idéia de vazio a cercar o herói, é enfatizada quando são mencionados meios sonoros e visuais:

         Evitava o silêncio, pelo menos logo depois da morte de Lídia, mas a televisão e o telefone passavam a ser silêncios estentóricos.[11]

            O viúvo vive numa casa onde parece não existir nenhuma imagem, mas apenas penumbra. Num certo momento o herói tenta fugir até da presença semanal da criada, que faz o sol entrar na casa:

         O sol, contudo, teimava em se instalar uma vez por semana. Diabo de rotina. Era quando vinha D. Benedita.
                                                        /.../

         Não sabia em que cômodo ficar, escolhia o dia da semana em que teria de ausentar-me o dia inteiro, mas às vezes coincidíamos e eu me via acuado, incômodo em minha própria casa, quase pedia desculpas a D. Benedita por morar ali, ora que é isso, nhô sim, nhô não, outro tanto envergonhado de ela expor sem limite ou pudor a minha vida mais noturna e escondida.[12]

            Tudo isso se exprime numa linguagem própria que individualiza o romance, ao mesmo tempo em que o coloca numa tradição das grandes narrativas. Adelto Gonçalves exprime bem isto:

         O viúvo, de Ronaldo Costa Fernandes, é um romance surpreendente. As frases curtas, diretas, rápidas e cortantes reconstituem um clima pesado e sombrio (...), em que o estado mental de quem escreve transborda para a palavra.

                                            /.../

(...) É como se Machado de Assis tivesse renascido na segunda metade do século XX e, incorporando todas as conquista literárias das últimas décadas, renovando o idioma e produzido este texto que é o depoimento apurado de um homem atormentado.[13]

            Isto tudo é o que autoriza Adelto a classificar a obra como “uma das poucas obras-primas do romance brasileiro deste início de século XXI,”[14] uma obra que “revisita” os grandes fantasmas da modernidade e pós-modernidade, como acontece com Angústia de Graciliano Ramos, mencionada por Lídia Cadermotori na apresentação para O viúvo, e como se vê em O estrangeiro de Albert Camus.
            Salomão Sousa enfatiza ainda a qualidade da linguagem que marca a obra, junto à maestria com que coloca a relação entre personagem e realidade.
            Esta é uma obra que está a merecer mais fama e estudos críticos do que já recebeu, como se vê em Adelto Gonçalves.

         Que um país periférico não seja capaz de reconhecer os seus melhores autores, isso é sintoma de que a nação já entrou em acelerado processo de desintegração. E por isso seu futuro se desenha duvidoso. Infelizmente.[15]







[1] Ronaldo Costa Fernandes – O viúvo, LGE Editora, Brasília, 2005, p.36.
[2] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p. 95.
[3] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p. 115
[4] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p. 123.


[5] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.150.
[6] Salomão Sousa – Agulha – Revista de Cultura # 49, Fortaleza, São Paulo, janeiro de 2006, acessado em 20/28/2007.
[7] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.24.
[8] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.27.
[9] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.27.
[10] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.27.
[11] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.28.
[12] Ronaldo Costa Fernandes – O.C., p.29.
[13] Adelto Gonçalves, O viúvo, um acontecimento literário, Jornal de Poesia, acessado em 20/08/2007, p.1.
[14] Adelto Gonçalves – O.C. p.1.
[15] Adelto Gonçalves – O.C. p.3.