sábado, 27 de fevereiro de 2021

O fazedor de fragmentos, O difícil exercício das cinzas




O facho da lanterna é um filete de luz
que desafia a ordem da noite.
Um vaga-lume espichado de luz contínua,
um bicho iluminado em suas entranhas,
que aponta para um longo dedo de luz artificial.
E como não é elétrico, o facho é uma invenção
das pilhas dos olhos que também se espicham
num terceiro olho de ciclope noturno.
O facho de luz se revela: é um facho de surpresa
e busca, ninguém acende uma lanterna
para fazer o dia como a luz elétrica
fornece um solzinho particular. 
 
A lanterna traz o facho do medo,
é um dia de bolso e, principalmente, o facho mostra
a precariedade do dono,
a luz presa na mão,
a luz que escapa da mão,
a luz que nos reduz à condição menos humana,
há menos carne e matéria e tudo é recortado
um álbum de fotografia de objetos
ou um pesadelo de fragmentos.


(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A estrada, conto RCF






Arre. Nem mesmo o posto de gasolina da Ipiranga havia encontrado. Parou o caminhão no acostamento. Desceu. Olhou em volta: a vegetação miúda e retorcida. Tirou o boné, passou o braço na testa para recolher o suor. O que havia de errado naquele caminho? O pio dos pássaros. Como podiam sobreviver ali? Comer das árvores sem fruto, beber na poeira dos riachos secos. Entrou no caminhão. Pasmo. Que ia fazer? Inútil. Não estava três horas naquela esperança de encontrar Carolina?

Avistou o caminhão que vinha na outra pista. Fez sinal. O motorista não parou. Vinte e tantos anos de estrada e nunca vira aquilo. Vira assalto – chegara a ver motorista morto dentro de caminhão –, prostituição – as menininhas da idade de sua filha se oferecendo por quase nada –, vira de tudo na estrada, só não vira aquela afronta, aquele descaso, aquilo lhe doía mais do que assalto ou prostituta sem peito.

Cosme seguiu estrada. Mas não andou muito. Merda, sem gasolina. A única coisa diferente na estrada que conhecia de cor e salteado eram uns marcos, visivelmente novos, anunciando os quilômetros. Cosme estava no quilômetro 320 – quilômetro trezentos e vinte de onde para aonde?

Já ia anoitecer.

Lembrou-se da família – o que estariam fazendo agora? Três filhos, a mulher e a avó morando numa casa de dois quartos que construíra ele mesmo, tijolo após tijolo.

Frequentava a igreja. A igreja é que salvava todo mundo na vizinhança. A igreja é que salvara o Silvino da bebida, salvara o Marcos da jogatina, salvara a própria mulher dele da tristeza. A tristeza da mulher era um vício. Se não fosse o pastor da igreja a mulher tinha se matado e ele tinha de criar três filhos e cuidar da avó – como ia cuidar da avó e criar três filhos se cada dia que passava em casa correspondia a uma semana na estrada?

Adormeceu.

Dia seguinte, acordou com o sol seco e frio batendo no rosto. Pela primeira vez na vida, pela primeira vez na estrada, Cosme entrou em pânico. Imaginou-se eternamente perdido ali, abandonado. Como um náufrago, como alguém perdido no deserto. Que diabo acontecia com aquela estrada, que diabo acontecia com ele? Teria entrado numa estrada desativada? Ou ainda estava preso ao pesadelo? Iria acordar em Carolina, na cama de um hotel vagabundo e aí então suspiraria de alívio. E riria de tudo aquilo, contaria o sonho para a mulher que se benzeria e diria, cruz credo, parece até coisa do demônio.

Nenhuma nuvem no céu. Ligou o rádio. Chiado. Mexeu na antena e nada. Isolado do mundo. Desesperado, fechou o caminhão. Caminhar ainda com o sol fraco. Meio-dia, impossível a caminhada. Carolina deveria estar atrás de alguma curva, ainda que Cosme pudesse avistar a estrada meter-se, de tão reta, na linha do horizonte.

Por certo havia acidente. A polícia rodoviária desviaria o trânsito. Seria isso? Sabia não. Ao meio-dia exato, parou. Buscou abrigo na sombra de uma árvore. Passado um tempo conferiu o relógio: meio-dia. Há quantas horas ou minutos estivera andando com o ponteiro em meio-dia? Teve medo de enlouquecer. A mulher, Valquíria, lhe disse que preferia a loucura à tristeza. Quis enlouquecer: louco, ele não estaria ali. Adormeceu. Não sabia quanto tempo dormira, mas, agora, de onde estava, podia ver a estrada movimentada: caminhões, caminhonetes, carros de passeio, a estrada voltou a ser a estrada que conhecia.

Um caminhoneiro parou a um sinal de carona de Cosme. Levou-o até o local onde estava o caminhão. Mas o caminhão não estava lá. Cosme enfureceu-se. Filhos da puta, nem podia ganhar a vida honestamente, um bando de malandros vinha e lhe roubava o instrumento de trabalho.

Meses depois de voltar para casa, Cosme foi ficando triste, triste e a mulher o levou até a igreja. O pastor não a havia livrado da tristeza, por que não podia tirar Cosme daquele abatimento? Cosme frequentou a igreja. Tomou gosto das rezas. Estava desempregado, pagava ainda as cotas do caminhão roubado. Mas era feliz. Até o dia que entrou na igreja e encontrou-a vazia. Nem mesmo o pastor estava lá. Como a igreja podia estar vazia se era domingo de Páscoa?





imagem retirda da internet:rodney smith

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Os contos fantásticos de Machado 1, RCF



           Em Machado, o fantástico se dá por intermédio da cultura. No caso de “O Alienista”, por exemplo, a situação exorbitada é fruto de um comportamento científico. A ironia machadiana é culta. Seus jogos mentais, suas metáforas e citações estão baseados em dados culturais, seja citando a Bíblia, seja os clássicos. No livro A ideologia do personagem brasileiro, observei que até o tempo é um fato filtrado pela cultura. O delírio de Brás Cubas está eivado de civilização, erudição e cultura – aqui, não no sentido antropológico, mas de produção culta do conhecimento. Em “O Alienista”, em que valha sua própria crítica à cultura, é devido ao saber de Simão Bacamarte e de sua pesquisa clínica da mente que se desenvolve paulatinamente o desconcerto entre civilização e barbárie interior. O desvio aqui é cultural também no sentido de produção social e de comportamentos humanos comuns e inerentes à vida em comunidade: ciúme, avareza, ambição, etc. Contudo, o que dispara o mecanismo de caça aos loucos é uma teoria. Uma teoria advinda do campo tão criticado do positivismo cientificista. E como bom moralista, herdeiro dos moralistas ingleses e franceses, há a “lição” final, a moral da fábula.
            Vide o caso da teoria filosófica engendrada por Quincas Borba: a loucura, irmã do fantástico, dispositivo propulsor ou consequência febril, até ela mesma, a loucura, é fruto de elaboração mental e leva o crivo da cultura. É um ordenamento filosófico – onde subjaz o que todos nós já sabemos que é a crítica ao positivismo de forma irônica e até certo ponto grotesca. Não é um mero distúrbio mental. A proposta de Quincas Borba carrega em si a lógica do silogismo e opera no campo do mais requintado fruto do saber: o amor à sabedoria, a filosofia. Loucura lúcida, ao vencedor as batatas, Quincas erige um panteão ao fantástico através do instrumental mais sofisticado da cultura erudita ou não: o saber filosófico ou o saber filosofar. A lucidez dentro da insânia está em fazer a crítica cultural pertinente sob o invólucro do disparate especulativo de uso da dialética ensandecida.
            Está patente nos contos fantásticos a expressão do poder. Em “O alienista”, pode-se observar que, em nome da ciência, Simão Bacamarte não só enfrenta o poder da Câmara como conta também com o poder da Coroa que envia tropa em seu auxílio. O embate entre Câmara x Casa Verde é um embate emblemático entre poder civil, emanado do povo, poder político x poder absolutista, repressor, seja em nome da Coroa, seja em nome do saber. Logo, poder e saber se igualam.


            Muitos contos aparentemente fantásticos de Machado não podem ser enquadrados como tais. Alguns são meras piadas, casos fabulosos, o personagem tomado pela loucura, o sonho e o uso de outros recursos para chegar ao absurdo. Em “O dicionário”, é contada a história de um rei que, para conquistar a amada, impõe concursos sempre vencidos pelo poeta amado de Estrelada. Por fim, manda fazer um “dicionário” e que toda a população fale a língua do dicionário. Uma fábula sobre a arte, sobre o poder de construção de forma original. Não adianta fazer em versos antigos ou modernos porque o poeta da amada vence sempre porque constrói (mistura as palavras) de forma original. Em Machado, é constante a preocupação com a criação (ver outros contos como “Cantiga de Esponsais”). O arredio também se encontra na mesma categoria (o personagem expressa-se verbalmente de maneira original, mas não tem disciplina ou desejo de escrever, até que envelhece e perde a verve inicial).
            Dentro do mesmo esquema anedótico este “Ideias de canário”. O narrador encontra um canário falante num belchior. Compra-o, porque além do mais o canário é filósofo, tem  concepção da realidade. O mundo para ele é onde vive, o belchior. Ao ser comprado pelo narrador, o mundo passa ser a gaiola e a casa do narrador, que fica encantado com um canário falante e que filosofa, embora desconheça palavras como infinito, azul etc., pois sua realidade é muito restrita. Responde sempre que tudo o mais é ilusão e mentira.
            “Lágrimas de Xerxes” é uma curiosa narrativa em que Frei Lourenço, recusando-se a casar Romeu e Julieta sob o firmamento, a céu aberto, e não no altar da igreja, conta a história das lágrimas do persa Xerxes que domina o mundo, mas chora e os ventos são testemunhas das suas lágrimas. Os ventos, indecisos, vão perguntar o que fazer com a lágrima de Xerxes ao sol e à lua. A lua deseja que ela se converta em estrela. O sol concorda que se converta em estrela, sem antes desdenhar da pieguice e melancolia da lua (percebe-se toque de inveja do sol). Mas esta estrela que o sol propõe deve ser irônica. O tom de apólogo ou fábula ou parábola está na fala do frade que não quer casar Romeu e Julieta ao ar livre. Ora, o tom é realista, porque o irreal é fruto da parábola do frade. Mas, por sua vez, a parábola do frade é literária, não é real. Refere-se a uma realidade literária. Por fim, estrela de ironia ou piedade, como diz Julieta, o que ela deseja é que o padre os case.
            Em “A chinela turca”, é significativo que o narrador termine o conto afirmando que está no indivíduo maior interesse que no espetáculo. “Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no espetáculo.” O conto se refere a uma visita de Major Lopes Alves que adentra a casa do bacharel Duarte que está se preparando para uma festa onde encontrará seu amor. Sonha com vê-la e dançar com ela. A visita inesperada o atrasa, irrita-se, a visita quer lhe ouça uma peça de teatro. Começa então a maçante leitura dos atos da peça, enquanto que Duarte dorme durante a leitura. No sonho, é perseguido pela acusação de roubo de uma chinela. O intrigante é que o personagem não estranha estar num mundo desconexo e implausível que se modifica a cada momento, sem lógica causal. Foge então Machado do fantástico puro, do fim do século XVIII e do romantismo francês e alemão do século XIX, que cria a indecisão do acontecido seja no leitor, seja no personagem que vive a ação. O fantástico também incorpora a criação de um mundo extraordinário. Só mais tarde é que, ao final, deixará a dúvida no leitor e no personagem. Aqui a dúvida é desfeita e explicada pelo sonho. O importante é que Machado centra no personagem o delírio e coloca a realidade em segundo plano. Se interpretarmos a realidade como esse “espetáculo” de que fala o narrador, teremos a realidade do personagem como o verdadeiro espetáculo, ou seja, o mundo interior, o universo da subjetividade, o mundo do sonho e da irrealidade do inconsciente é que é o espetáculo único e verdadeiro.
            Há uma certeza neste conto: o personagem, seja acusado pelo roubo, seja obrigado a casar, ele sempre está na defensiva. É um homem fantasticamente acuado. Em vez de proceder à ação fantástica é receptor da ação dos efeitos da agitação absurda.



            “A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar.
            – Três cousas vai o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira é casar; a segunda escrever o seu testamento; a terceira engoliar certa droga do Levante...
            – Veneno! interrompeu Duarte.
            – Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte para o céu.”(p. 301)


Também nos contos há a fase romântica e a fase realista. É só a partir da publicação, em 1882, do livro de contos Papéis Avulsos, um ano após Memórias Póstumas de Brás Cubas, que Machado coloca seus contos na galeria dos recortes irônico-realistas. Já antes publicara em revistas alguns contos fantásticos, como, por exemplo, “Uma excursão maravilhosa”, de abril-maio de 1866. E é justamente quando, em plena consciência do seu ingresso no mundo da narrativa não-romântica que Machado se sente atraído por expressar em livro o lado absurdo. Adeus aos bons costumes e mulheres que renunciavam nobremente a seus amores como em Iaiá Garcia e Helena. E embora saibamos que Machado tinha certa resistência ao naturalismo “encatarrado” como se apresenta em Primo Basílio, de Eça de Queirós, é logo nesta segunda etapa estética que o Bruxo do Cosme Velho se fascina pelo delírio, as releituras/reescrituras das passagens bíblicas e outros comportamentos do fantástico.
            São componentes da estrutura do mundo cultural, mesmo que às avessas, os contos “O dicionário”, “Ideias de canário”, “Lágrimas de Xerxes”.
            Os contos de Outros contos, publicados em revistas, desde 1864, são geralmente contos longos, que lembram o Machado do início como Contos fluminenses (1870) e Histórias da Meia-noite (1873).
Em “Uma excursão maravilhosa”, de abril-maio de 1866, Machado coloca o jovem poeta Tito, sonhador, escrevendo versos, alugando sua pena, para “um sujeito rico com fama de poeta”. Um dia apaixona-se e é rejeitado. Em seu quarto, encostado à cama, pensa em suicídio e viagem, o primeiro ato era sanguinolento e ele descartou e o segundo não tinha como empreender com seus parcos recursos. É quando lhe bate à porta a fantasia. O narrador transfere para o personagem a voz narrativa. Tito conta então uma viagem fantástica ao reino de Quimera, onde se fabricam massas quiméricas para poetas e políticos sonhadores. É um conto com bastante ironia. Ingressa no maravilhoso e, como no delírio de Brás Cubas, faz uma viagem fantástica. Só que aqui não há nenhuma explicação para ingressar no reino do maravilhoso a não ser recostar-se e sonhar. O país da Quimera produz ainda utopias e modas. É uma sátira social, ao estilo do apólogo.
Ao estilo de “O espelho”, em “Um esqueleto” o narrador conta um caso assombroso a um grupo de pessoas. É a história de um homem que convive com o esqueleto de sua ex-mulher. O Dr. Belém coloca o esqueleto da primeira esposa que ele matou por ciúme na mesa, junto com o novo cônjuge, que por sua vez vive horrorizada. “Estava-se em pleno Hoffmann”, diz o narrador referindo-se à atmosfera fantástica, que é desfeita porque o narrador, ao final, brinca e afirma que tudo daquilo não aconteceu, “eu quis apenas fazer apetite para tomar chá. Mandem vir o chá.” Sendo apenas uma brincadeira de salão, refugo a narrativa, só deixando o registro de sua existência.
O conto “O imortal” se inscreve na série dos contos jocosos de Machado. Há certa concordância com outras narrativas. Novamente, Machado coloca um grupo fechado de ouvintes, desta vez, o coronel Sicrano e o boticário Fulano, ouvintes da narrativa surreal. Quanto à questão do fantástico, o conto pode ser incluído na categoria, pois, ao final, o narrador deixa a dúvida se a narrativa é real ou não, se a narrativa não se propunha apenas a reafirmar a homeopatia, da qual o médico-narrador fazia apologia ou se o narrador queria apenas aplacar o medo ancestral da morte que assustava a dupla de ouvintes. Ao mostrar a imortalidade como enfado e repetição de situações, o pai do narrador, que é o personagem principal da história (o imortal) toma a última parte da beberagem que o fizera eterno (logo, a beberagem é o elogio da homeopatia) e, por fim, morre. Mas, como é apresentado de maneira ligeira e com certo ar de galhofa, fica-se numa outra dúvida: não seria o conto apenas divertimento para os leitores das páginas femininas das revistas da época? É, claro que sim. O que não impede que o conto seja levado “a sério” por nós. Não há muita originalidade no tema, que até hoje persiste (vide Saramago com o seu As intermitências da morte) e trabalha com o nosso imaginário e modelo arquétipo, a inconformidade com o efêmero da vida. Se Machado não o incluiu em algum de seus livros de contos é porque não o via, certamente, com algum valor literário, principalmente porque nesta época já estavam escritos “O alienista”, entre outros.

Em “O anel de Polícrates”, em que Machado faz a crítica do homem sonhador (é curioso observar que Machado é ambíguo em relação à fantasia: ora ironiza, quase ridiculariza, ora a vê de forma gentil e delicada) o personagem é Xavier. Aqui, Machado enumera, ao listar as experiências de Xavier, as características dos seus contos fantásticos. Para o personagem A, em Xavier se pode encontrar “o raro, o esquisito, o maravilhoso, o indescritível, o inimaginável”. Aí está o fantástico machadiano. A primeira observação sobre este conto refere-se a que Xavier não é apresentado por um narrador impessoal ou relata sua própria experiência. Xavier é visto, num estranho diálogo, por intermédio dos olhos de um personagem. Ou seja, Xavier é uma visão de segundo grau. É relato de um relato. É visão e relato de alguém que não só apresenta, mas o julga. Nesse tudo cabe, em termos de fantasia. Este dado é pertinente para nossa análise: o personagem já não é senhor do espetáculo, mas outro ser passivo – é a visão de um personagem. Tanto é a visão particular de um personagem que o outro no diálogo discorda dele. Os personagens são nomeados com letras: A o acredita sonhador, Z o desconhece sonhador. 


“Z –  Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. [...]
             A – Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem só de pão vive o homem. Você fala de Marta, eu falo-lhe de Maria; falo do Xavier especulativo...
             Z – Ah! – Mas ainda assim, não acho explicação; não me consta nada dele. Que livro, que poema, que quadro...”





           Até agora pudemos observar que há personagem que sofrem a ação do fantástico como o bacharel Duarte no conto “A chinela turca” e aqueles que provocam a ação do fantástico como Xavier neste conto. Alguns poderiam dizer que os personagens até aqui são promotores do fantástico, em virtude da fantasia e do sonho, e ao mesmo tempo são vítimas de sua própria produção do fantástico.
            Esse conto aponta outra questão recorrente nos contos fantásticos de Machado: a produção abundante da mente. A imaginação joga aqui um papel importante. Mas quase sempre Machado opõe imaginação fértil x produção literária frágil. Geralmente o personagem é exuberante em citações, em descobrir achados até mesmo filosóficos, a ter boa oratória, ideias extravagantes, mas é impotente para escrevê-los. Nem sempre, contudo, o personagem deseja escrever. Há um hiato entre escritura e pensamento e muitas vezes a escritura não é buscada, o personagem se basta com a imaginação transbordante. Não é o caso, porém, de suas narrativas – e mesmo contos como “Cantiga de Esponsais” – em que o personagem busca transcrever sua inspiração para o papel infrutiferamente. Este personagem delirante, de imaginação fervilhante, é que leva o conto para o patamar do fantástico, ou seja, o fantástico se dá por intermédio agora não do sonho (a não ser que se encare o sonho como imaginação), mas por meio de uma exultante e incontrolável produção do espírito criativo. A imaginação criativa poderia levar o personagem a pensar uma obra – peça de teatro, poema ou conto – de viés “realista”, mas não. Geralmente, o personagem desse calibre aventura-se no reino das musas mais extravagantes e desconcertantes.


            “Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia línguas de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. [...] Um dia enamorou-se loucamente de uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe um mimo três estrelas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador foi aí qualquer pé-rapado. Não, senhor. O portador foi um dos arcanjos de Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que ele cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglês. Era assim o Xavier. Capeava os cigarros com um papel de cristal, obra finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma caixinha de raios de sol.”

              O conto, na verdade, é sobre a infertilidade de alguns (Xavier) e a fertilidade de outros que se apossam de ideias alheias. “O anel de Polícrates” é uma fábula. O rei Polícrates, o homem mais feliz da terra, temia uma reviravolta do destino. Sacrifica-se, antecipando uma futura derrota e, para aplacar a ira da Fortuna, desfaz-se do anel. Um peixe come o anel, um pescador o pesca, lá está outra vez o anel na mesa de Polícrates. A moral da historieta, no caso do conto, é que as ideias fantasiosas de Xavier são apropriadas por outros que a colocam em artigo de jornal ou peça de teatro. E, assim, Xavier vê seu “anel” retornar a seus ouvidos (prato). Xavier chega a tentar escrever um conto, “um conto fantástico, à maneira de Edgar Poe, uma página fulgurante, pontuada de mistérios...” Mas não o consegue. Não há verdadeiramente conto fantástico. “O anel de Polícrates” tem a atmosfera fantástica, embora se possa classificá-lo entre as fábulas moralistas de Machado. De qualquer forma, o pensamento de Xavier é algo delirante. O princípio do conto tem não só a atmosfera, mas como uma descrição exaltada de fatos extraordinários. Logo, Xavier é aqui, ao mesmo tempo, aquele que inflige o fantástico como aquele que, passivamente, recebe o influxo do fantástico.
            O conto “A visita de Alcebíades” inclui-se nas narrativas cultas, objeto e instrumento precioso para fazer, junto com a imaginação, o aparecimento do fantástico. Como também é comum acontecer, o fantástico em Machado não se dá paulatinamente, mas abrupta e intempestivamente. De súbito, o narrador, amante da antiguidade, leitor culto, tem diante de si, em carne e osso, a figura histórica de Alcebíades, que lhe indaga das novidades gregas. O narrador não se faz de rogado e, embora surpreso, mas agindo naturalmente, narra-lhe os acontecimentos do povo grego ao longo da História. O narrador justifica o aparecimento de Alcebíades em função de sua prática e crença no espiritismo.
            Intempestivamente, com medo de que Alcebíades não só o visite, mas, após o jantar, leve-o para a eternidade da morte, resolve contar que vai a um baile. Alcebíades, depois de saber que várias das manifestações culturais do seu tempo estão sepultadas como os deuses, as danças e as festas pagãs, decide também ir ao baile com o desembargador. “Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o culto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu século.” Há aí também, obviamente, um jogo cultural e uma divergência de séculos. O século de Machado e seus autores e o século de Alcebíades, da Antiguidade. 
            O desembargador, acostumado às leituras, não estranha não só a chegada inesperada de personagem de outro século, mas também a vinda da cultura de outro século. O século culto de Alcebíades, o século das leituras do desembargador. Machado tem consciência do fantástico. Isso é o importante, porque aqui e ali, revela, como no caso de fazer um conto à maneira de, como ele próprio chama, Edgar Poe, Machado, neste conto, deixa escapar a consciência do “maravilhoso”, isto é, Machado não o faz ingenuamente, mas com conhecimento de método e estrutura.

           “– Vá, continua, dizia-me ele, quando eu parava de lhe dar notícias.
           Mas eu não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à eternidade. Esta ideia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos.” (grifo nosso)

                  Neste conto, não há o recurso do sonho ou da loucura. O leitor pode imaginar que se trata de uma narração disparatada e ensandecida. Contudo, Machado cercou-a não de verossimilhança – que existe –, mas tomou cuidado de colocar um personagem, não só culto, como também jurisconsulto, o que lhe dá ar de verdade jurídica, ao mesmo tempo em que encerra a narrativa na moldura de petição ao Chefe de Polícia. O ar documental não retira a sátira, a ironia, nem o humor, mas caracteriza o tom pretensamente documental e policialesco, já que a petição é para que o chefe de polícia retire de sua casa o cadáver de Alcebíades, morto pela segunda vez. O autor da petição termina com o insólito pedido, sem antes deixar um desconcerto cultural: Alcebíades não entende os “canudos” que o personagem veste e se horroriza, porque pensa que o desembargador irá se suicidar, ao ver que este coloca em voltado pescoço uma gravata. O clima é de absurdo, não desmentido, nem duvidado, em nenhum momento. Se Machado reescreve as Escrituras, aqui não chega a reescrever a História, mas faz dela uso de forma irônica – nada escapa à visão culta do Bruxo. Até agora o que vimos foi o embate entre dois personagens, com visões conflitantes, visões culturais conflitantes. Se em “O alienista”, o embate é entre a razão cientificista de um contra os hábitos e costumes da sociedade e da natureza humana, ou seja, homem x sociedade ou, como quer Raymundo Faoro, a luta entre a Ciência e a Teologia, o saber científico e os dogmas da Igreja que já perdia influência e prestígio; aqui, há o confronto desembargador x Alcebíades. Ou seja, homem x homem.



                   Em “Viver”, conto pertencente a Várias Histórias, Machado insiste com uma de suas metáforas preferidas: a da vida como edição de livro. “Falaste em capítulo? Felizes os que só leram a vida em um capítulo.” Essa é uma imagem recorrente que encontramos nos contos “Trio em lá menor”, “Pai contra mãe” e em Brás Cubas (XXVII). O conto em questão é sobre a tensão eternidade e morte. Os dois personagens são eternos: Prometeu e Ahasverus. O primeiro, oriundo da mitologia grega; o segundo, de lenda erudita cristã que se enraizou no repertório da mitologia sobre Cristo. Ambos sofrem com a ação do tempo e a impossibilidade de morte. Ahasverus deseja a morte a fim de que rompa o ciclo repetitivo da vida. Prometeu, contudo, tem uma vida eterna ainda mais dolorosa, acompanhada de suplício e castigo corporal. A pura eternidade de Ahasverus é já sua condenação. Aqui o que ocorre é o cultural (mitologia grega, lenda erudita da Idade Média) associado a um tempo também erudito que vai provocar, como no delírio de Brás Cubas, o ensejo do absurdo. Logo, cultura, tempo e absurdo tornam-se termos comuns. Observei em A ideologia do personagem brasileiro que o tempo machadiano é um tempo filtrado pela cultura, ou seja, que o tempo não é apenas o ruir (“o tempo que rói tudo”), o destruidor e o envelhecimento das coisas, mas há forte componente do elemento cultural no tempo machadiano. Ahasverus condena Prometeu porque criou o homem. Ahasverus é o último homem e convocará os animais para que presenciem o criador de uma raça derrotada e sofredora: a humana. E a culpa disso tudo, segundo Ahasverus, é Prometeu. Não há solidariedade na eternidade, mas luta eterna entre um criador pagão e um humano cristão.
                Em forma de apólogo absurdo e inusitado, Machado exerce ao mesmo tempo seu lado disfórico e sua compreensão do humano anseio: permanecer vivo, apesar dos sofrimentos. A vida não como dom divino, mas um castigo desejado, ou um desejo que mesmo ferido e maltratado é preferível ao nada. Ahsverus, o imortal, por fim morrerá, mas ainda iludido de que será o elo entre o último homem e uma nova raça que surgirá. A ideia de uma nova raça é-lhe incutida maliciosamente por Prometeu, desenganado. Curioso é que Machado fale de uma nova raça. Uma humanidade melhorada, um ser humano especial, despido das humanas contradições e erros. Esta concepção de um futuro luminoso, claramente apresentado de forma distópica, já que Prometeu induz Ahasverus ao desejo de perfeição e ainda de imortalidade, ele, Ahasverus, que sempre reclamara de seu castigo eterno, é uma prova cabal da dubiedade da escritura machadiana e da ironia perversa que condena tudo o que é humano ao degradado. Quem melhor tem compreensão do que acontece (um eternamente castigado por dar vida e saber ao homem, outro eternamente castigado por não acudir Cristo, logo o saber pagão e o saber religioso) são as duas águias que vêm dar maltrato a Prometeu e morte a Ahasverus, ou seja, a natureza. As águias representam então o saber não humano, a sabedoria do elemento não cultural, o saber do natural. Da mesma forma que fizera com o conto “Um apólogo”, esse conto é também dialogado. Um diálogo absurdo, irrepresentável. Ora, o diálogo, principalmente na época em que vive Machado, é a forma mais realista do realismo. Quero dizer, é no diálogo que os realistas e naturalistas podiam registrar o falar “errado” dos negros e dos malandros, do povo. Mostrar peculiaridades da fala regional. É justamente por intermédio deste instrumento que Machado instaura o clima de absurdo como se ele, o diálogo, também estivesse a serviço do delírio humano.
                Em “O cônego e a metafísica do estilo”, Machado insiste em um dos seus temas preferidos no conto: o da criação artística. Geralmente o personagem não tem vocação, mas alberga a ambição da glória artística. Neste e em outros contos (“Um homem célebre”, “Cantiga de esponsais”, entre outros menos citados), o personagem luta contra a falta de inspiração. Não chega este “O cônego e a metafísica do estilo” a ser considerado um conto fantástico, na medida em que o narrador, brincalhão (com o espírito da galhofa, mas sem o azedume do niilista) propõe uma viagem à mente do cônego que busca um adjetivo (que tem sexo: o feminino) para um substantivo (que, por sua vez, tem seu gênero: masculino) a fim de escrever um sermão que lhe fora encomendado. O problema da criação preocupava Machado, logo um polígrafo de largo espectro e que, pelo volume de páginas produzidas, não deveria ter empecilho para a criação. O que observamos é que a criação é fruto da imaginação e do processo inconsciente de aparecimento de construções imagéticas e outras formas de expressão literária. A criação em si, como fenômeno, não é algo científico, ou que se obtém pelo estudo, aprendizagem, formação escolar ou ensino regular. A criação pertence ao reino do fantástico no sentido de que se assemelha ao processo singular de deixar escapar o fluido movediço do inconsciente, rio negro e espesso que ninguém vê ou percebe, a não ser no mundo também fantástico do sonho ou da loucura.
                    Prova maior está no trecho a seguir que, já na mente do cônego, o narrador faz verdadeira viagem pelos caminhos da consciência e pelos desvãos do inconsciente. Na figura de Sílvio e Sílvia, o substantivo e o adjetivo que se buscam e se afastam, caem entre labirintos novos e velhos, aventuram-se no burburinho de ideias que é o cérebro do religioso.

                  "Passamos da consciência para a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das ideias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens, e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também. Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre embriões e ruína. Grupos de ideias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras ideias, grávidas de ideias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras ideias virgens. Cousas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura.”

   Ora, o mundo da “grande unidade impalpável e obscura” é o mundo da natureza. O inconsciente está mais perto da natureza do que da cultura. É nele que se instala ou germina a expressão mais animal e primitiva do nosso ser, dos instintos mais recônditos e selvagens que precisam do controle e repressão da cultura, da sociedade, da censura. Desta maneira, contradizemo-nos: o fantástico, em Machado, passa pelo mundo da cultura. Há de se reparar, contudo, que o narrador controla a narrativa e é ele que tem consciência (cultura e repressão) para manter sob controle o ato de narrar e o objeto narrado. As “ideias, grávidas de ideias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras ideias virgens”, assinala o narrador. Mantendo o controle e exercendo ato de cultura sobre aquele objeto informe e amalgamado, onde se misturam desde citações a Platão a reminiscências pueris, o narrador ingressa, como o narrador de Gerard de Nerval, no “vasto mundo incógnito [...] por entre embriões e ruína.”
            No pequeno grupo de contos que nomeio de “reescrever as Escrituras”, podemos começar pela narrativa “Adão e Eva”, talvez o menos importante do conjunto. De qualquer maneira, embora o conto venha em estilo jocoso, já contém alguns elementos do conjunto. “Reescrever as Escrituras”, inicialmente, é uma atitude de laicizar, dessacralizar o divino. Machado, contudo, não o faz de maneira sacrílega ou em tom de condenação ao clero. Mesmo porque Machado investe na economia não da Igreja, secular, mas no pensamento da Igreja, no seu ideário e, mais ainda, fugindo da instituição Igreja, Machado está preocupado em rediscutir as leis divinas. Rediscutir as leis divinas é mexer com o imaginário cristão e, principalmente, popular. A civilização ocidental e, também sua cultura, está impregnada da Bíblia. Ao reescrevê-la, Machado está reescrevendo a própria civilização ocidental. A crítica de Machado logo não é contra a instituição, mas ao imaginário e ao poder cultural. Subvertendo o que está escrito como lei divina, Machado também investe contra a lei secular, a lei laica, pois ela informa, normatiza, pune, estabelece, cria procedimentos, onde não aparecem as dores humanas, as fraquezas de alma, os sofrimentos íntimos e recônditos. São estes últimos – pecados múltiplos – que fazem a humanidade ser humanidade. Nele, Machado usa um dos seus cenários prediletos: a mesa da sala, confraternização burguesa, a conversa dos salões. Sem pretensões maiores do que uma piada, o juiz de fora (lei laica), em forma de brincadeira, no ano de mil setecentos e tanto, na Bahia, instado a dar sua opinião sobre Adão e Eva, discorre longamente sobre a tentação e corrige o final da história: não houve a tentação de Eva e logo o paraíso é restabelecido e eternizado. Neste conto, Machado não insiste em buscar os erros, defeitos e manchas psicológicas. Em tom de galhofa, refaz a Escritura, em frente de um frade carmelita (lei divina), que não o contradiz. Não sendo o procedimento dos outros contos que veremos à frente, podemos já observar o comportamento de colocar de cabeça pra baixo o que estava em seu posto, canonizado e estabelecido desde os tempos bíblicos. 
            No conto “A igreja do diabo”, apresenta-se outro comportamento dos contos de Machado em geral. Diria mesmo que há um comportamento generalizado de sua narrativa e que aqui, nos contos fantásticos e, mais ainda, neste propriamente dito, se realiza: a necessidade de dar ordem ao caos. Se observarmos o “Delírio”, em Brás Cubas, veremos que na desordem indiscriminada persiste a necessidade de explicação (e não digam de que nos tempos do romantismo e realismo havia a necessidade de não extrapolar e tudo justificar, pois aí mesmo está a literatura fantástica em alemão, francês e inglês, contrariando, com Hoffman, Maupassant de “Orla”, Gautier e Poe) e, mais do que explicação, de organização do que é fruto da desordem e do inconsciente. E ainda mais, além da necessidade de dar ordem ao caos, estamos diante de uma atitude estilística de Machado: a de sistematizar o pensamento. O caso mais agudo vem a ser a teoria do Humanitas, com toda sua carga irônica, do aloprado Quincas Borba. A igreja do diabo não é apenas uma anarquia, uma sublevação, um movimento de colocar o que estava embaixo no reino de cima, mas descrever uma organização daquilo que, no pensamento ocidental cristão, representa o caos e a desorganização. Não há uma teoria do inferno no sentido jurídico-organizacional e institucional, apesar dos famosos vários círculos do inferno. O inferno, para nós, é justamente o desarranjo do mundo. O mundo celestial é uma cópia de regras e mandamentos que se reflete no código mais severo que é a Bíblia. A Bíblia é o ordenamento jurídico e institucional mais eloquente da civilização ocidental. Aqui o que Machado quer introduzir não é apenas a inversão de valores, que é a primeira leitura. Subjaz o estrato de uma desorganização que precisa, para sobreviver, organizar-se como uma igreja, com seus códigos, com suas leis, com suas disciplinas e seus ordenamentos. No diálogo com o Diabo, Deus pergunta: “– Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?”

(continua)
(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Edições Academia Maranhense de Letras, 2016)