sábado, 25 de setembro de 2021

O amor traduzido, poema RCF


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Visitei a casa do ciúme,
onde se supõe que cada sombra
esconde encontros lúbricos
atrás de portas que se multiplicam
como espelhos postos um diante do outro.
Pensei em gestos ensandecidos:
enforcamento por pasmo,
o arsênico da fome,
o gás do flagrante.

Vesti-me de todas as maneiras,
deixei o cabelo crescer;
cortei o cabelo,
usei bigode e fiz curso noturno.
Li poemas de Shakespeare,
no original,
porque o amor
é de difícil tradução.



(poema reescrito do livro de estreia Estrangeiro, Rio, Sette Letras, 1997)

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Sementes e frutos, crtica de Antonio Carlos Secchin a Matadouro de Vozes





Sementes e Frutos

Antonio Carlos Secchin


 
Trama-se num desalento crônico a tensa e densa poesia de Matadouro de vozes, mais recente obra poética de Ronaldo Costa Fernandes, cuja trajetória de ficcionista, contemplado com alguns dos mais importantes prêmios nacionais (e o internacional, da Casa de las Américas) vem cedendo espaço à sua vigorosa veia do poeta.
O título já propõe um paradoxo: se a poema deseja ser o lugar onde uma voz possa nascer, como, ao mesmo tempo, ele se torna abrigo de um matadouro de vozes? A contradição se desfaz se consideramos o poema como o espaço onde se fala de tudo que o cerceia e deseja silenciá-lo: é pelo exorcismo da não poesia, do "matadouro", que a poesia aspira a (sobre)viver, na condição náufraga de voz a esmo, e, por isso, incapturável ou indomesticável a apropriações de toda espécie. Ronaldo transforma em liberdade o que parece degredo, afirmando, com desassombro, a condição de uma palavra acuada e acusada: "juro dizer a verdade/ nada mais que a poesia". É essa palavra segregada o objeto de desejo do poeta: "paciente que sou do hospital/ das clínicas poéticas/ onde vivo internado há décadas/ sem previsão de alta".
Daí decorre a sensação ambígua de desânimo e de recôndito orgulho da própria marginalidade. A consciência de estranhamento frente aos ritos sociais alija o artista dos protocolos da tribo, condenando-o à mais acintosa solidão. Tal relação doída e inamistosa com que lhe é vizinho patenteia-se, ao longo do livro, já na carga semântica negativa (ou, quando não, neutra) da maioria dos substantivos e adjetivos que nomeiam os textos: egoísmo, lamentações, despojos, lobo, azar, mal, ilusão, negrume, renúncia, néscios, viciados, cínica. Inexiste a aproximação com o outro, e isso se torna patente não apenas no maciço predomínio de textos em que apenas o "eu" se presentifica, como também no aspecto correlato, e simetricamente oposto, da quase total ausência do "tu". Uma segunda pessoa tão esvaziada de vida quanto o simulacro humano do manequim fantasmagórico que ocupa a capa do livro, não por acaso num ambiente de escuridão e diante de portas cerradas. Se formos lastrear as convocações diretamente dirigidas pelo poeta a um interlocutor em segunda pessoa, encontraremos de início não o "tu", mas o distanciado e divino "Vós": "Ó Deus, tirai-me dessa piscina de nillismo". Ou, então, um outro impermeável ao diálogo ("Tu me falavas/ de futuros indecifráveis"), marcado pela ausência física, seja momentânea ("Há cinco anos que não te ouço mais), seja irreversível, como no belo (pseudo)diálogo com "Frida Kahlo". Também em torno de contatos frustrados gira o poema "Diálogos": "Dialogarei com os mortos/.../ E, se ninguém me ouvir/ falarei aos ventos, / que, como rádio, / falam sozinhos".
Numa ardilosa (e fingida) sinalização de intercâmbio, em algumas peças o "eu" se pluraliza, transformando-se em "nós". Porém, um olhar mais atento logo percebe que na poesia de Ronaldo a primeira pessoa do plural, em vez de sinalizar coesão, aponta, ao contrário, um conjunto de "eus" solitários: "nós" que não se atam. Vozes que se esvaem em recíproco desconhecimento, desunidas em desarmônico plural.
A carpintaria da forma, em Ronaldo, o leva a criar saborosos (muitas vezes, gastronômicos) neologismos. Adepto ferrenho do verso livre e refratário à utilização da rima, o discurso do poeta, bastante pessoal, não deixa, aqui e acolá, de evocar a sombra de Drummond, como em "A imagem em arabesco". Mas, se no poeta mineiro, existia, ao término da Segunda Guerra Mundial, um olhar prospectivo de otimismo, no poeta maranhense nada parece salvar-se. É ler "Búfalo sobre plantação", em que, à abertura jubilosa – apesar, ressaltemos, do verbo "doer" – "Meu cérebro dói de tanta esperança", contrapõe-se o melancólico desfecho – "a cachoeira das águas passadas/ que movem o moinho das desventuras".
Nada se salva? Algo, talvez. Exatamente no meio do caminho, no poema 37 de um conjunto de 74, Ronaldo Costa Fernandes incrustou "Criadouro de vozes", que aponta, pela arte, a via de uma salvação possível: "abriremos uma estrada/.../ Logo as árvores vergastadas pelo vento/ lançarão ao chão/ as sementes dos caminhos". As sementes foram lançadas, e germinaram nos frutos poéticos deste belo livro.


terça-feira, 21 de setembro de 2021

O viúvo, capítulo 16


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            Há muito que desconheço a relação entre minha voz e o que ela diz. Às vezes acredito que falo coisas que são independentes. Que as palavras já estão dentro de mim, que basta abrir a boca para que elas saiam, sem esforço. As palavras seriam independentes. Um apêndice, um órgão autônomo. Ou uma digestão malfeita. Ou ainda algo que é secretado como um hormônio que a mente não controla.

            Sempre me pautei pelo bom senso. O bom senso é a norma do viver, nem gordo nem magro, nem alto nem baixo. O bom senso é claro seria o mediano e o mediano é o medíocre. Minhas palavras são medíocres como o branco. Minhas palavras enfim são brancas. Mas me pagam por elas. Pelas palavras ditas. Poucas vezes ganhei pela palavra impressa.

            A palavra escrita também é um hormônio. Sinto como ela se espalha pelo cérebro como um remédio que anestesia os circuitos nervosos. A palavra escrita tem circuitos curtos.

            Guardo comigo, como quem guarda uma tara, a origem das minhas palavras. As pessoas se enfadam se você fala de si mesmo. As pessoas se enfadam muito mais se você fala que suas palavras estão no mesmo campo da serotonina, da dopamina ou da nora-adrenalina.

            Às vezes minha palavra sofre de carência. De menos. De não secreção. Fica seca, não há líquido, não há circuito nervoso, muito menos curto. Então me afundo numa ausência que lembra braço amputado, metade do pulmão arrancado, próstata extirpada, fratura craniana.

            A palavra, a minha palavra, fica assim fraturada. Por dias não há conserto, nada que a engesse, amoleça, costure, opere ou extirpe. Minha palavra então sofre de desvios, de trânsito, de incômodo por não saber onde se encontra. Outros órgãos falam. As mãos, que são falastronas por natureza. A cabeça, que gosta de sublinhar e pontuar. O corpo mesmo, amplo, musculoso, de voz grave.

            Nasci para repetir o pensamento alheio. Queria ter meu próprio pensamento, mas o pensamento dos outros é mais forte.

            Com o pensamento dos outros consigo comer, vestir e ter uma casa para morar. É forte o pensamento dos outros.

           

também em e-book


( O viúvo. Brasília: LGE, 2005)


segunda-feira, 20 de setembro de 2021

A arena do corpo, poema RCF








Às vezes brigo
e fico sem falar comigo.
Viro-me as costas,
durmo numa beirada de cama,
passo dias de mal de mim.
Quero todas as atenções.
Se chego tarde em casa e não estou
quero saber por onde andou meu coração.

De muito tentar me reconciliar,
de me pedir perdão,
e ato contínuo me estender a mão,
percebo que só farei as pazes
quando por fim os dois espíritos
que em mim não se conformam
habitarem o corpo morto
que é uma arena que não abriga dissensão
nem toma partido
de dois que nada mais são.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)