sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Frida Kahlo, poema de Matadouro de Vozes

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Em teu andaime de ossos
para construir uma vida
de cor e política,
 o corpo azteca
que retesa os músculos
da existência febril,
eu até diria, de tua
exuberância fabril.
Vontade de se enroscar
em teus panos mais
que coloridos: teus panos
ameríndios, teus panos
pré-colombianos: no
Peru e na Bolívia, com
chapéu de coco espanhol
as mulheres são totens
de carne e roupas
que se moem na paisagem andina.
Teus olhos de vísceras,
tuas sobrancelhas de vício,
teus lábios de Adelita
e  revolução mexicana
são delírios de carmim
que nos meus sonhos se
esvaem feito um relógio de Dalí.



(do livro Matadouro de vozes, 2018)


quinta-feira, 7 de outubro de 2021

O inglorioso das horas, poema RCF


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A noite está oca 
em seu tronco barbudo.

Logo o dia amanhecerá 
longo com seus braços de ruídos 
e suas pernas de escorpião
que ao final, encurralado, se matará.

Uma árvore delgada espicha seu 
pescoço para ver além da
cerca da imaginação.





(do livro Matadouro de vozes. Rio: 7Letras, 2018) 









                                  








quarta-feira, 6 de outubro de 2021

VIEIRA NO MARANHÃO: BENDITA VISÃO, Edmílson Carminha











Edmílson Caminha



Não é fácil escrever ficção sobre personalidades com o vulto de Camões, Cervantes, Shakespeare, Napoleão, Einstein: o peso histórico, a importância da obra inibem, e, muitas vezes, bloqueiam o processo criativo, a construção da personagem, o desenvolvimento do enredo. Louvem-se, pois, a coragem e a determinação de Ronaldo Costa Fernandes, autor de Vieira na Ilha do Maranhão (Rio de Janeiro : 7 Letras, 2019), romance admirável, um dos melhores da literatura em língua portuguesa, nos últimos tempos. Recria, com força humana e grandeza de estilo, os oito anos vividos pelo Padre Antônio Vieira no estado do Maranhão e Grão-Pará, entre 1653 e 1661. Não se trata, porém, de “romance histórico”, acadêmico no mau sentido da palavra, mas de história romanceada, com o brilho, a competência e o saber de mestres do gênero, como Erico Verissimo, Agripa Vasconcelos, Ana Miranda e Josué Montello, este conterrâneo maranhense do autor.

A gênese do romance é pitoresca: em Lisboa para uma feira do livro, Ronaldo entrevê, entre milhares de títulos, um do angolano Pepetela, sobre a presença de Vieira na África (embora não houvesse o jesuíta posto os pés no continente). Retorna depois à estante e não o acha; pergunta a vendedores, vai a livrarias... e nada, notícia nenhuma da obra que tinha a certeza de que vira. Esquece-a, mas a pergunta volta a provocá-lo: e o livro de Pepetela...? Para ver-se livre da quase obsessão, resolve: se o angolano não escreveu sobre Vieira na África, ele escreverá sobre o padre no seu Maranhão, pelo que lhe somos gratos, tamanha a beleza da história que nos conta.

A partir da excelência da linguagem, com um quê de setecentista, de ressonância barroca, sem a tentação de imitar o estilo da época, que levaria o autor a lamentável pastiche. Veja-se, como ilustração:



O tempo é a imagem móvel da eternidade, dissera Platão. Aquela teoria seduzia Vieira porque cabia bem a Deus e à criação do mundo. A eternidade era divina, o tempo era secular. Deus era a eternidade. Adão poderia viver o tempo divino, mas decaiu e Deus criou o tempo. Deus criou o homem, depois da Terra, e colocou o tempo para dar mais perfeição àquilo que ele fez. O tempo é volátil, duplo, cópia semelhante da essência de Deus.



          Personagens são magistralmente compostos: os inacianos Vieira, Bettendorff e Carcavaz; António Porqueiro, prático de adivinhações pelas vísceras dos porcos que lhe davam dinheiro; Olegário, que com eles copulava para a geração de monstros, metade gente, metade bicho; Bento Maciel, devorado na prisão por um basilisco, animal feroz e desconhecido; Mariana, que pariu um rato; a filha do sapateiro, Luzia, com um elmo na cabeçorra que não parava de crescer; Caga-Osso, holandês que se entregara à antropofagia; Arduíno da Babel, pretenso poliglota, construtor de uma torre que o levaria a falar com Deus, não sabia em que língua. Criações dignas do melhor García Márquez.

A desafiar o romancista, a reconstituição de uma época, quanto aos costumes e hábitos das pessoas que nela vivem. Lembro-me do que me contou Rachel de Queiroz, a propósito do seu também magnífico Memorial de Maria Moura. Ao dizer que um jagunço caçara no embornal o fósforo para acender o cigarro, imediatamente lhe ocorria a dúvida: cangaceiros usavam fósforo nas profundezas da caatinga? Também assim Ronaldo Costa Fernandes, obrigado à pesquisa histórica para saber como funcionava a máquina de confissão para torturar prisioneiros; que à mesa se comia pão de mandioca, não de trigo; que nos prostíbulos se tocavam charamelas e flautins. Em uma cena de canibalismo, o rigor histórico se enriquece pelo talento com que é narrada:



Os mais gordos são os mais apetitosos e desejados, deixando escorrer na grelha a gordura que, salgada, é um acepipe único. Depois de tudo colocam o corpo do prisioneiro para retirar os pelos, que são obviamente muito odiados e dificultam a degustação. Lavam com água quente. Muitos preferem não temperar. Em seguida, cortam em pedaços. Há quem prefira as entranhas. O fígado é por demais apreciado. O coração o disputam por ser o centro da máquina do corpo e ter fama de dar coragem a guerreiro.        



 A par da castidade de Vieira, a quem, lê-se, faltavam os testículos, um substancioso conteúdo erótico permeia o romance. Praticamente todas as mulheres dão-se à infidelidade conjugal, ao gozo de cama, à fornicação com desembargadores e almotacés, como se coisa mais prazerosa não houvesse a fazer naquele fim de mundo. Meninos nascem de dois meses e outros de mães engravidadas por um dedo. Em diálogo entre sogro e genro, o verbo forte se enobrece pela segunda pessoa do plural:



‒ Quero que vós consumais o matrimônio com minha filha.

‒ E não estamos casados?

‒ Em linguagem do poviléu, quero que a fodais e me deis um neto.

E ante a resistência do marido:

‒ Escutai aqui, médico de merda, ou fodeis minha filha ou morrereis junto com os pustulentos que têm mais atenção de vossa parte que o cono de minha Firmina.



Conta José Saramago que, ao atravessar uma rua no Rio de Janeiro, viu em uma banca de jornais a manchete “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, que lhe inspirou um dos seus grandes romances. Em Lisboa, Ronaldo Costa Fernandes deparou em uma feira de livros com obra inexistente do africano Pepetela. Bendita visão, que nos possibilita ler Vieira na Ilha do Maranhão, romance que engrandece a ficção brasileira e honra a literatura em língua portuguesa.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Les pilotis, tradução do poema As palafitas em francês


Foto de Sérgio Benetti




As palafitas


O bisturi do rio rasga a carne da terra
e, assim, retorcida e cirúrgica, a floresta
deixa à mostra a veia exposta.

O rio é um mar com margens,
obsessivo e operoso,
sempre com falo ereto e fértil,
quando não defeca as impurezas industriais,
que se rabisca nos papéis da terra,
e vai cuspindo gente ribeirinha.

No campo amazônico,
as casas de varandas arregaçadas
molham as canelas na água.
Veneza selvagem, de palacetes de madeira,
renascimento de instintos insopitáveis.

O silêncio da mata
pia e borda
à beira amazônica das águas.
A água está dentro dos homens
com seus naufrágios. Um dia
a morte virá - colapso - e o
legista assinará: afogado de si mesmo.

A palafita, em meio à selva,
é um bicho de madeira:
tem vértebras das paredes,
tem respiração pelos brônquios das janelas,
excreta pelas fossas do quintal.

Morto o bicho de pernas finas,
seu oco desabitado de entranhas
torna-se hospedeiro do micróbio homem
que ali secreta seus humores
e a palafita, bicho anfíbio,
passa a ser transmissor
das pequenas misérias humanas.




Les Pilotis

Le scalpel de la rivière déchire la chair de la terre
et ainsi, tordue et chirurgicale, la forêt
expose la veine exposée.

Le fleuve est une mer avec des rives,
obsessionnel et industrieux,
toujours avec un phallus dressé et fertile,
lorsqu'il ne défèque pas les impuretés industrielles,
griffonné sur les papiers de la terre,
et les riverains crachent.

Dans le domaine amazonien,
les maisons aux porches enroulés
tremper leurs tibias dans l'eau.
Venise sauvage, aux palais de bois,
renaissance d'instincts incontrôlables.

le silence de la forêt
évier et bord
au bord des eaux de l'Amazonie.
l'eau est à l'intérieur des hommes
avec ses naufrages. Un jour
la mort viendra - l'effondrement - et le
le coroner signera : noyé de lui-même.

L'échasse, au milieu de la jungle,
est un animal des bois :
avoir des vertèbres dans les murs,
a le souffle par les bronches des fenêtres,
excrète par les fossés de l'arrière-cour.

Mort la bête aux pattes minces,
tes entrailles inhabitées
devient l'hôte du microbe humain
qui y sécrète ses humeurs
et l'échasse, animal amphibie,
devient émetteur
de petites misères humaines.

Ronaldo Costa Fernandes - Brasil

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Verso e reverso, poema RCF



 by alicia caudle. www.alteredbits.com.




Uma estrela no bolso
me acompanha ao trabalho.
Ninguém vê a estrela no bolso.
O dia se fez aziago
e sem remissão.
A estrela me espeta
o lado esquerdo do mundo.
Minha estrela no bolso
tem pontas, arestas e chuvas de verão.
As sete pontas da estrela
são sete versos num papel dobrado.
Carrego um sentimento
brilhante e gasoso
algo que ninguém vê
e que ilumina os passos erradios
com a luz expediente da vida.


(Memória dos porcos, 2012)


A guerra, poema de RCF




Cheguei a ter uma rosa dos ventos
que apenas floriu
nas cartas que jamais recebi.
Não posso negar que tenho a consistência
de um trem:
meu início pode ser meu fim
(basta que mude de lugar
a fornalha que arde meus loucos motivos).

Cheguei a crer-me medieval e encouraçado:
era apenas a Idade Média da adolescência.
Meu norte é fácil porque depende apenas
de um fonema: a morte.
Tenho nostalgias das pontes
e gosto da idéia de estar
suspenso entre duas margens.

Acordo sempre com a sensação
de não haver dormido.
E o sono, ao contrário da letargia,
tem sido apenas uma pitada errada
do sal da lucidez
que, exagerado,
maltrata antes que dá gosto.

Nenhuma arma
fere mais, mortal e decisiva,
como o fogo-fátuo das sensações.
Passo então o dia no mundo da lua:
Sou Jorge e o Dragão.



(do livro Estrangeiro, Rio, 7Letras, 1997)



imagem retirada da internet: medieval

domingo, 3 de outubro de 2021

Cinematógrafo, poema RCF




A adolescência ficou presa
em algum cinema.
Gastou muito celulóide
dos anos no escuro.
Tem um sentimento arrevesado:
o medo de estar hoje no cinema
e sentar-se ao lado do adolescente
que nunca saiu da sala escura.
Ele tinha uma película muito delicada.
Há um cheiro de desassossego no ar.
As nuvens, desfeitas, tomam o caminho
de outros tetos.
Há teto bastante no seu medo.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)


(foto: rodney smith)