segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Rodoviária, poema RCF





Daqui não se parte,
aqui não se chega,
há um tempo imóvel
em toda multidão de pés
de borracha, de pés de ardósia,
de pés mecânicos de escada,
porque aqui o que existe é
redemoinho de gente,
agitação febril que se consome,
o suor diário de cana,
o pastel diuturno da manhã,
a cabeça operária,
o relógio de ponto no pulso.

Nesta Rodoviária não há viagem,
todos estão paralisados numa cidade
operária; aqui mesmo parece ser
o destino e a partida,
vermes no estômago,
no ventre do tempo,
consumindo-se de si mesmo,
a Rodoviária para existir
necessita dessa fornalha de gente
para produzir o calor febril da cidade.
Mas aqui há também ócio
e malandragem – há o eterno
flanêur suburbano, de pente no cabelo,
masca o chicletes do conto do vigário,
os bolsos vazios de trama e promessa.

Aqui há gestantes, despachantes,
amantes, crentes, cantores e desertores.
O que me invoca é a mesmice
dos rostos mulatos desgastando-se
na fotografia 3 x 4 do cotidiano,
na impressão pouco digital
da carteira não-assinada pela vida.

Na Rodoviária, o enxame nada produz,
tudo não passa de zumbido e gás carbônico,
letreiros com os destinos mais amargos,
os exilados de todos os campos e favelas,
de todo bairro popular,
aqui estão para embarcar
não para Taguatinga, Gama, Guará,
Recanto das Emas, Samambaia,
Ceilândia, Riacho Fundo,
mas todos estão embarcando para o futuro,
lá onde não existe hoje,
lá onde não existe passado,
lá onde não existe Rodoviária.



* Da chamada "rodoviária" de Brasília partem os ônibus para as cidades satélites.

O viúvo, 5º capítulo


Otto Dix. DER KRIEG ("WAR") The Dresden Triptych - YouTube
Estava na casa da doutora quando escutei os gritos. Perguntei pra empregada o que era aquilo. A moça disse que não sabia. Não sei do que se trata. A casa aqui, continuou ela, é muito sossegada. Os pacientes são nervosos, mas nunca atacam, gritam ou fazem escândalo. O homem aí deve ser um estranho. Nunca vi ele aqui, disse ela. Olha como estou nervosa. E pegou minha mão e ia colocar no peito, mas recuei, era um gesto muito íntimo, geralmente as mulheres que fizeram isso comigo era para eu tocar os mamilos por cima da blusa, mas a empregada não tinha essa intenção e eu não podia me permitir abusar do nervosismo da mocinha para tocar os seios dela.
A casa tem dois andares. Desperdício. Ali moram apenas duas velhas. Uma, minha psicanalista; a outra, irmã dela. A irmã da minha psicanalista não faz nada na vida. Sempre cuidou da irmã, foi uma secretária, mas hoje nem mesmo cumpre as funções de secretária. Que vida besta. É apenas um vulto vestido de saia que vaga pela casa, dá ordens desconexas para a empregada – vai ao supermercado e compra mamão, a empregada vai e quando volta ela pergunta por que a empregada comprou mamão. Por que comprou mamão? A senhora mesmo pediu... Eu? Você pensa que me engana, que tô gagá, pensa?
O cabelo das duas me impressiona. Os homens se tornam carecas, mas as mulheres vão perdendo cabelo e fica aquela coisa rarefeita, que a gente vê o couro cabeludo quando fica contra a luz. Tenho a teoria de que as mulheres que perdem cabelo também perdem outras substâncias, então os músculos ficam ralos, geralmente são miúdas como minha psicanalista e perdem a força da voz, que saem fracas, tão fracas como as palavras suspiradas num segredo ao pé do ouvido.
Estou na garagem, transformada em consultório. O consultório de vozes encarceradas. Ali sim estão as vozes em seu estado primitivo, porque saem, mas não saem, ficam ali, depositadas, aéreas, esparsas, presas para sempre no ouvido da doutora. A garagem é um ventre de vozes, estão amortecidas, esperam que nós as busquemos, há um repertório também de outras vozes, viciadas, lidas, eruditas, que a doutora recolhe do ar, borboletas rebeldes, que se cruzam, formando outro bando de borboletas.
– Onde está o filho da puta?
– O senhor, por favor, se controle.
– A senhora tem parte da culpa em tudo isso.
– Culpa?
– Se desestimulasse o cretino, ele não ia atrás de minha mulher.
– O senhor está passando dos limites.
– Por que tinha que se meter na vida alheia?
– O senhor está falando de quê?
– Da senhora.
– Se o senhor não se retirar da minha casa, chamo a polícia.
            O nome dele é Manfredo. Esse sujeito me persegue há um bom tempo. Chame a polícia, chame – e tirou o celular do bolso – vamos, liga, liga. Tenho medo de enfrentá-lo porque é um brutamontes. Mas ele não tem certeza de que eu estou ali na casa. Onde está ele? Onde está ele? O sujeito que sabe onde está o desafeto não precisa ficar perguntando onde está o desgraçado que persegue. Encolho-me instintivamente, mas não vou cometer o ridículo de me esconder atrás de cortina ou me abaixar atrás da mesa. Ele não domina a planta da casa, por isso não sabe por onde ir. Sobe até o segundo andar, vasculha o escritório, entra na cozinha e não encontra nada. Jamais vai supor que estou na garagem. Porque é na garagem, transformada em consultório, que a doutora atende.
            Manfredo é judeu. Não conviveu com a família, não herdou hábitos judaicos ainda que tenha feito o bar mitzvah. Mas, mesmo assim, ele tem um pesadelo recorrente: está numa câmara de gás num campo de concentração. Não é fácil você viver com uma lembrança que não é sua, um passado que pertence a sua raça. Se fossem só os pesadelos, ele poderia se livrar deles ao acordar. Mas os pesadelos continuam durante o dia. Aterroriza-o a possibilidade de ser transformado num daqueles seres esquálidos que saem nas fotos e nos documentários sobre a Segunda Guerra. Oh, Deus, foi apenas um pesadelo. Os judeus aparecem em preto-e-branco, barba por fazer, uma barba desamparada, os ossos espetando a carne, que não é função dos ossos fazer parte da parte de fora do corpo. A fila descomunal e desumana, vigiada por cachorros, enfileirados para o absurdo do crime oficial, a foto mostrando os oficiais nazistas tão ferozes quanto seus cães.
            A geografia da casa cria ouvidos. Um homem não pode ser incompleto o tempo todo.
            No banho, me contou a mulher dele, a ameaça era o vapor que subia e se tornava o mesmo gás, passado de geração a geração, que por fim o alcançava, o mesmo gás carrasco, o Zyklon-B, cuspido das torneiras secas. As torneiras vaporizavam o terror. As torneiras expulsavam o genocídio, o crime industrial, a máquina de morte. O vapor do banheiro transformava o boxe num galpão, onde outros homens despidos se banhavam de fumaça.
            A mulher dele era bem mais nova. Não era judia. Não estava preocupada com aquilo que ensandecia o marido.
– Você está suando?
– São os gases.
– Onde você vê os gases?
– Os gases a gente não vê. Os gases a gente sente o cheiro.
– Não havia cheiro no Zyklon-B.
– Como você sabe disso?
– Eu não sei se li ou não li. O que importa é que é infernal viver com um homem que se sente perseguido por algo que nunca viveu.
Cantos, danças, músicas, homens abraçados, Manfredo apenas conhecia o mundo judeu nas festas, não freqüentava sinagoga, não rezava pela mesma Torá, não jejuava o mesmo festim de ritos, de dogmas, de manias, de proibições ancestrais. Por que os gases vinham perturbá-lo como lei divina, castigo do diabo antes que de Deus? Por que os vapores o perseguiam e ele se sentia na fila para o banho? A imaginação, sim, tinha dentes, abocanhava. Era isso que a mulher dele não compreendia. Só quem vive um pavor igual pode compreender o pavor do outro. Você é capaz de entender o horror, hein, me diga, é capaz de entender o horror?
            Sempre esteve fora das minhas cogitações existenciais o sofrimento dos judeus. A gente tem pena, é solidário, se revolta com os crimes dos nazistas. Mas é algo distante, não faz parte do cotidiano. Curioso como a vida nos coloca frente a realidades que nunca imaginamos presenciar. Jamais imaginei que teria que conviver com alguém que vivera os horrores da guerra, mesmo que essa guerra já tivesse acabado há mais de cinqüenta anos e que ele não tivesse ainda nascido quando ela acabou. Então, é capaz?

domingo, 10 de outubro de 2021

Um homem é muito pouco 33



Resultado de imagem para lucian freud
Os amigos poetas de Alice não gostam de mim. Me acham burro. Um sujeito sem leitura. Tenho minha leitura, mas não é a leitura deles. Alice odeia a poesia dita feminina que fala na hora presente, no amado perdido, no voo do pássaro, na tentativa de recuperar o instante e tudo o que é deliquescente e abstrato ou trata do universo feminino como menstruação, maternidade e pintura de unhas só pode entrar na poesia se for como ironia.

            Procurei Alice na casa de Artur Rabelais (é claro que o Rabelais era apelido e não o sobrenome do cara) e ele me disse na porta do apartamento, uma espelunca igual a minha, que não via Alice fazia uma semana e que não tinha ideia onde ela poderia estar. Alice não tinha pouso fixo e se eu quisesse entrar que eu entrasse, mas Alice não estava ali. Bati em outras duas portas e ninguém tinha visto Alice. Outro grupo de Alice era de cineastas ou de candidatos a cineasta. Eram cineclubistas e curta-metragistas. Haviam feito apenas um ou dois filmes, mas quem os ouvisse falar pensava que estava falando com Antonioni ou com Bergman. Falavam em Dizga Vertov, Griffith e Eisentein. Mas quem não fala em Dizga Vertov, Grittith e Eisentein nos dias de hoje? Cheguei a ir ao Museu de Arte Moderna, na Cinemateca do MAM, para ver se a encontrava. Os cineastas já eram outro tipo de gente, tinham mais grana, eram de famílias ricas. Para fazer um filme você precisa de grana, para fazer poesia basta papel e lápis. Os cineastas amigos de Alice também ficam impressionados como conheço cinema. Conheço cinema porque eu via desde Tom e Jerry, nas sessões dominicais do Pax quando criança, O Rei dos Reis, um filme que passava sempre na semana santa, e hoje em dia vivo escondido no cinema vendo comédias idiotas até filmes de arte. Alice já aparecera nos dois curtas-metragens do grupo, mas Alice não quer ter corpo e quem não quer ter corpo não pode colocar o corpo inteiro numa tela. Alice pensa que pode ser reconhecida, e por meio das pessoas do filme, eles chegariam até ela. Alice não diz quem a persegue, não digo quem me persegue.


(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)


Eterno passageiro por Antonio Carlos Secchin


A poesia de Ronaldo Costa Fernandes se tece num mundo de asperezas e sob o signo de contínuos descentramentos. No (renegado) livro-folheto de estreia Urbe (1975), já se desenhava uma tensa e hostil relação do poeta frente ao espaço da metrópole, vivenciado como fraude e clausura. Nas coletâneas seguintes – Estrangeiro (1997), Terratreme (1998) e Andarilho (2000) – desdobra-se a imagem de um poeta em trânsito, através de sucessivas viagens cujos pontos terminais, em vez de representarem a conquista de um paraíso apaziguador, impedem a consolidação de qualquer esperança, ao deixarem patente a inutilidade da travessia (“Nenhuma França me fará feliz”). Este Eterno passageiro, que se insere na trilha aberta por seus predecessores, desde o título se apresenta com refinada ambigüidade: cada um dos dois termos pode ser lido como substantivo ou adjetivo do outro, e ambos ainda podem ser considerados adjetivos simultâneos de algum elíptico substantivo.
O leitor há de ter percebido o lapso de 22 anos decorrido entre a estreia e a retomada da criação poética de Ronaldo: nesse longo intervalo, ele construiu sólida carreira como romancista, tendo sido contemplado, inclusive, com o prestigioso prêmio Casa de Las Américas. A poesia, porém, era uma espécie de hóspede clandestina de sua prosa, aguardando o momento de abrir passagem e retomar um lugar que era seu na origem. As recentes publicações no gênero confirmam que, finalmente, a escrita de Ronaldo optou por dividir-se (ou multiplicar-se) entre a ficção e o lirismo, abrindo-se ainda à arguta reflexão ensaística de O narrador do romance (1996).
Se a inflexão explicitamente engajada foi a tônica de Terratreme, os demais títulos privilegiam uma atitude que filtra o social pelo olhar impactado do sujeito lírico que o sofre. O mundo, o outro, lá estão, não como realidade alheia ou alienada, mas transformados em dádivas ou dores agregadas ao corpo do poeta. Eterno passageiro é, em Ronaldo, mais uma etapa consequente desse processo de não estetizar a brutalidade da matéria-prima da existência. Peles e corações ressequidos, trastes, objetos banais, ossos, vísceras, besouros: tudo cabe numa poesia que devolve e revolve, com a força de sua voluntária crueza, a impureza da aventura de estar vivo. A “combustão de existir”, referida no belo texto “Imaginações violadas”, é o processo que sustenta, não se sabe ao certo com que propósito, as máquinas humanas, navegantes náufragas à deriva da vida.
Os cinqüenta e sete poemas do livro operam num registro lingüístico bastante despojado, mas não necessariamente fiel à ortodoxia da linhagem construtivista. Eterno passageiro embarca ao largo de algumas das tendências hegemônicas de nosso lirismo contemporâneo. Nesse sentido, pode-se dizer que o “andarilho” Ronaldo Costa Fernandes, “estrangeiro” no banquete de confrarias poéticas ostensivamente (auto-)festejadas, percorre caminhos paralelos ou marginais a vários roteiros previamente sinalizados para o aplauso crítico: o exibicionismo erudito, a intertextualidade para poucos, o minimalismo, o virtuosismo conservador e bem-penteado ou – seu oposto, idêntico pelo avesso – o beletrismo da rebeldia, previsivelmente “desconstrutor”. O poeta, conforme registra no texto “Para Nauro Machado”, prefere tratar o “poema como búfalo não domado”. É ler peças como “Outubro”, “Poema contra a cremação”, “Avenida Beira-mar, 1960”,“Deserto” para nos convencermos do acerto dessa opção, que nos brinda com uma poesia de voz e vôo próprios.


imagem retirada da internet: miró