sábado, 30 de outubro de 2021

A vida é sonho, poema RCF

 



 

O carro de boi range

na estrada do sono.

A luza brinca de pecado.

Ouço o som rouco da alma.

É dia na noite.

Os sonhos vida são

A pedra,

na cachoeira,

                        é indiferente

                        às mãos da água.

 

As juntas do sonho

se espreguiçam na largueza da alma.

Meus pensamentos têm músculos

   nos braços longos do medo.

 

Nunca amanhecerá       

nos cobertores do anonimato.

Nem mesmo um facho de luz

romperá a janela tímida

                                               da rotina.

O sol negro do pesadelo

coloca sua mão pesada

sobre minhas pálpebras inocentes.

Amanhã não acordarei,

               nem haverá depois de amanhã,

               todas as tentativas de futuro

               se resumirão a um bocejo

                                               antes do fim.

 

Talvez cresça, me torne um homem,

e me veja no espelho do banheiro,

engravatado e barba feita,

como numa foto 3 x 4.

 

Antes que a lucidez matutina,

                                      Que tudo expõe,

                                      Quero o esconderijo noturno

                                                                       das plantas

                                                                       que vivem

                                                                       sem saber

                                                                       que vivem.     

 

 (poema de Estrangeiro, Sette Letras, 1997)

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Um homem é muito pouco 19








Queria também era anestesiar o pensamento. O álcool não anestesia o pensamento. A maconha e a cocaína também não anestesiam o pensamento. Em mim as drogas fazem o pensamento ficar com o nervo exposto, em carne viva. Em mim as drogas e a bebida fazem é mutilar meu pensamento. E meu pensamento mutilado pensa medo. Meu pensamento com droga não sobe nem desce. Meu pensamento com droga fica como elevador parado entre dois andares e um homem não pode viver com o pensamento parado entre dois andares. Não desgosto do dr. Máximo. Máximo é um homem minúsculo. Gosto das coisas minúsculas que não assustam a existência do mundo. E parecem sugerir que a delicadeza e o detalhe são como uma unha tão nobre e importante como as coisas grandes e que deblateram o tempo todo.

            Ainda há abandono e ruína no mesmo andar. Ou andar acima ou andar abaixo. Uma miséria vertical. Andei muito pelo mundo e conheci a desgraça horizontal. Aqui existe tudo em forma de risco. Um risco de cima abaixo. Há um monte de família. Uma delas: o garçom. O garçom é o tronco. A árvore do garçom só tem galho vadio. É um tronco que trabalha num restaurante perto. Os outros garçons trocam de roupa no trabalho.

            O garçom meu vizinho sai vestido de trabalho. A gente abre o elevador e o elevador está black-tie. Cada dia mais o terno cresce. É que ele murcha na sua função de tronco. A família pouco se dá, hum, hum, se ele adoece. As olheiras piores são as olheiras dos pulmões. Ele também não tem os pulmões vadios. O pulmão dele é operoso e um pulmão operoso que não descansa talvez logo adoeça.




(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

O pomar da renúncia, poema RCF




Lasar Segall é tema de duas exposições na Chácara Lane ...
Lasar Segall


Há cinco anos que não te ouço mais 
embora continues a falar nos interstícios 
do morse do cotidiano
que pontilha aqui e ali o staccato de passos.

Que voz é essa, 
de outro macerado tempo,
que rompe os diques,
encharca a terra com sementes úmidas?
Que voz, sopranista voz, me assalta 
os ouvidos da renúncia,
a taciturna travessia intramuros?

Limbos nascem nos pés das árvores 
e brotam nuvens de alvoroço.



(do livro Matadouro de vozes, 2018)


terça-feira, 26 de outubro de 2021

Zoologia da vida e da morte, O difícil exercício das cinzas


 

A vida e a morte
não deveriam ser femininas.
Não há nada mais neutro 
e pessoal a uma só vez.
A vida é híbrida
como  mula
e a morte é de dois gêneros,
comum e anfíbia,
um jacaré que habita
a água da escaramuça
e sobrevive na terra da surpresa.
O homem é também anfíbio:
regurgita na placenta das casas
e se oferece à ambulatória morte
em cada palmo de terra que pisa.
A mesma condenação dos rios
que não logram fugir do seu destino.



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio, 7Letras, 2014)


segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Pulsações, poema RCF







Não sinto a pulsação dos muros, 
a umidade das horas.
Não sinto minhas pernas,
erguidas pelo mistério
dos anos. 
Não sinto as veias abertas
de nenhum corte de gás no pulso.
Não mergulho mais
na liquidez dos bares. 

O dia amortece solene
a cobiça do tempo 
com seu passo de marcha militar 
e morbidez das poças.



(do livro Matadouro de vozes. Rio: 7Letras, 2018)