sábado, 26 de março de 2022

Elevadores, poema RCF











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É um estômago de ferro 
que devora e vomita
todos na barriga da baleia
em sua viagem vertical.

Em que andar descerei 
quando chegar a minha hora?
No térreo das poucas ideias?
Na planta baixa 
da arquitetura do marasmo?

Ou arranharei os céus 
com a hipótese das ascensões?



(do livro Matadouro de vozes, 2018)



(lara zaukoul)






sexta-feira, 25 de março de 2022

As ilhas derrotadas, poema RCF


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No Maranhão, como no Titicaca,
e, dizem, também no México,
há ilhas que frei dos Prazeres
chamou de andantes.
São ilhas desnorteadas,
ilhas sem âncoras.
Vão cansadas de tanto migrar
e nunca chegar a termo,
prontas para invadir o fulcro da surpresa.
As ilhas viajantes são andarilhas de mato,
o desejo submerso de limo,
a busca constante do vício e do único.
Incomodam o homem as ilhas
que vagam além de sua inércia
e, estando um dia aqui,
outro dia acolá, as ilhas flutuantes
lembram-lhes que nem toda terra
é firme, nem toda ilha tem sua localização
exata e que os homens, se não são ilhas,
tampouco têm terra firme
e, flutuantes, andantes e viajantes,
podem dormir num canto de rio pacífico
e acordar na máquina de água
que são as cachoeiras,
trituradoras de homem e terra,
que desabam em si e findam mundo.



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

terça-feira, 22 de março de 2022

Considerações sobre a vizinhança, RCF


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De quem somos vizinhos?
Mais do que senhor da vacuidade
que mora em frente à dúvida,
somos vizinhos da indefinição das portas
dos elevadores que não se abrem.
Vizinhos das luzes a interrogar o passado,
o quadro sem tela da janela.
Do inquieto permanecer
das coisas em repouso.
Do rumor dos móveis
e da carnagem das paredes.
Somos vizinhos dos rostos anônimos,
principalmente o que vemos ao nos barbear.
As escadas são duas faces do mesmo degrau,
tanto ascende quanto nos leva
ao rés do chão.
Somos vizinhos dos prudentes
e dos pudicos com suas higienes da vida,
o medo de ser contaminado pelos sujos humores,
a aderência do fim, o apelo esponjoso do remorso,
a imundície da liberdade,
afundar-se na lama dos desejos
ou nos dejetos do pensamento.
E aí vem a mania de limpeza:
lavar as mãos 
o Poncio Pilatos dos nossos erros
a crucificação da culpa
a nos pregar as mãos
nos jatos das pias.