sábado, 30 de abril de 2022

Cozimento dos prazeres, poema RCF






 Resultado de imagem para man ray













A cozinha espinafra 
o que de melhor há em mim.
As saladas de euforia 
não fazem parte da dieta
dos meus nervos
nem dos temperos de alma.

Cozinho meus pensamentos.
O sal adoça meus sentires 
e a gula pelas palavras
apimenta meu renascimento.

A carne é mais fraca 
quando a alma é tenra.
Penso nos embutidos 
de minhas veleidades,
o agridoce da juventude,
os passeios pelo mormaço
da idade adulta
e a fase inquieta 
onde asso à quentura
do forno das ideias. 

As frutas viciam-se 
em dentes 
e se oferecem, carne macia,
à lubricidade da boca,
e ao tempo maduro 
da última ceia. 




(do livro Mataduouro de vozes. Rio: 7Letras, 2018)

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Por que escrevi Vieira na ilha do Maranhão





  

               



Estava em Lisboa, numa feira internacional do livro, e comecei a folhear o volume do padre João Filipe Bettendorff e sua passagem pelo Maranhão. O padre Bettendorff, nascido em Luxemburgo, de cultura alemã, mal conviveu com Vieira. Em seu livro Crônica da missão da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, Bettendorff relata feitos que me encantaram. Era uma terra virgem, a criação de um novo mundo. Uma civilização europeia transplantada ao meio hostil e mágico. De repente, no torvelinho da feira, busquei por um livro de Pepetela sobre Vieira na África. Os livreiros desconheciam tal livro. Percorri, além das barracas da feira, as livrarias tradicionais. Nada. Eu até podia descrever a capa do livro. Busquei no Google e não havia livro nenhum de Pepetela sobre Vieira na África. Não me convenci. Havia um engano de todos. Eu tinha certeza de que Pepetela escrevera tal livro. Os dias se passaram, por um momento esqueci Pepetela, seu livro desconhecido, e retomei a leitura do volume do padre Bettendorff. Passado um mês, a inquietação retornou. Tinha de encontrar o inexistente livro de Pepetela. Cheguei até a pensar num conto para me livrar daquilo que começava a ser uma ideia fixa. Foi aí que resolvi me livrar daquela obsessão de outra maneira: escrevendo o livro de Pepetela. Com uma diferença. Não se passaria na África, mas na minha cidade natal, São Luís do Maranhão.

Vieira chegou no Maranhão em janeiro de 1653. E retorna a Lisboa em 1661. Tinha vivido entre nobres, grandes cidades e meios intelectuais privilegiados. Era o preferido do rei D. João IV. A Inquisição o vigiava e seus inimigos conspiravam contra ele. Vieira, por toda sua vida, será um personagem polêmico. Entre muitas das suas ideias e ações, pregou e agiu para que os judeus portugueses exilados na Holanda financiassem navios de guerra para Portugal, argumentou que não valia a pena brigar por Pernambuco com os holandeses. A solução era inusitada. Portugal deveria comprar Pernambuco dos holandeses. Morou em Amsterdã, onde tirou o hábito e se vestiu de veludo carmesim, colocou bigode crescido e espada à cinta, além de discutir teologia na sinagoga com rabinos ilustres.

Em 1654, retorna a Portugal para pedir a seu protetor D. João IV que editasse outra lei colocando nas mãos dos jesuítas o destino dos índios do Maranhão, o que despertou mais ódio dos colonos locais. Durante todos os anos que permaneceu no Maranhão, empreendendo entradas para as terras do Pará e ilha de Marajó, que chamava de ilha Joanes, ou ao sul, até a Serra do Ibiapaba e o Tocantins, Vieira atendia ao espiritual e ao secular. A luta entre ele e os colonos, que queriam utilizar os índios como escravos, durará toda a permanência do padre jesuíta na ilha de São Luís. A propagação da fé entre os colonos e as lutas políticas dividiam o maior sermonário da época, ou, para mim e muitos outros, o maior orador sacro em língua portuguesa e da literatura universal.

Sairá expulso do Maranhão em 1661. O povo revoltado, com espadas, tochas e pedaços de pau, ameaçava a vida do padre.

Escreveu e pregou no Maranhão alguns dos seus mais famosos sermões, entre eles, o dos Peixes. São Luís, naquela época, era uma cidade de poucos milhares de habitantes. Fui buscar inspiração, além dos sermões, principalmente nas cartas de Vieira. Li a literatura dos viajantes estrangeiros no Brasil Colônia: Gandavo, Antonil e outros. Servi-me da História de António Vieira, escrita por João Lúcio de Azevedo. Mas, principalmente, da minha imaginação.

                Este não é um livro de historiador, mas de um ficcionista. No livro, só Vieira, o governador Pedro de Melo e o padre Bettendorff são personagens históricos. O resto é bibliografia da minha imaginação.

                Sobre os personagens do livro, anotou o escritor Alexandre Arbex: “O texto é, em sua própria forma, um exercício de reconstituição de época, mas com um humor e picardia que dão um sabor de ironia aos arcaísmos. A constelação dos personagens que gravitam em torno do catequizador jesuíta apresenta uma fantástica galeria de tipos do Brasil seiscentista. O sapateiro visionário Manuel Gordilho e sua pobre filha Luísa, cuja cabeça descomunal seguia crescendo confinada num elmo de ferro; o mouro Omar Zaher, que, da vertigem de seus dois metros de estatura, concebera o projeto impossível de um dicionário universal, tão alto e insensato quanto o desígnio de Arduíno da Babel, o falso poliglota que erguia sua torre bíblica sem saber em que idioma falaria com Deus; o holandês Johannses van Basselar, desertor da civilização e convertido por amor a uma índia ao canibalismo dos nheengaíbas. Percorrendo, como um fio tortuoso, esses destinos desolados, a história de amor de Rui Serafinho e Ana Jacomé carrega o leitor pela mão da esperança”.

                Sobre os endemoniados, possessos e crimes de sodomia, molície, rapto de freira, entre outras transgressões, me vali do livro “O diabo e a terra de Santa Cruz”, em que Laura de Mello e Souza estuda os processos da Inquisição no Brasil. Os livros que li para compor Vieira na ilha do Maranhão constituem uma larga bibliografia que não vale a pena me estender aqui mais do que já mencionei.

                Levei um ano e meio escrevendo e reescrevendo e poderia ter levado mais tempo se não decidisse dar um fim a uma obsessão. Cada livro que escrevo é para me livrar de uma ideia que me assola e que só posso me livrar dela com o exorcismo da escrita. E a minha obsessão naqueles 18 meses era o Maranhão.

                Este livro não tem um personagem principal. Vieira é o fio condutor. Vieira é o personagem que costura, agrega e reúne toda uma comunidade. Os habitantes de São Luís, naquele início de mundo, são os personagens principais. Os desafortunados, os abonados senhores de tabacais, os comerciantes, as tribos indígenas, os tresloucados, a gente miúda, as putas e apaixonados, este conglomerado de colonos e gentios é o grande personagem do romance.

                Para terminar cito novamente as palavras de Alexandre Arbex: “A erudição e a força persuasiva das metáforas dos Sermões atravessam as falas de Vieira de Ronaldo Costa Fernandes, mesclam-se às palavras do seu protagonista com uma espontaneidade e um senso de precisão que imprimem um frescor de discurso vivo às velhas homilias do padre português. Para além do divertimento letrado, Vieira na ilha do Maranhão oferece um retrato da dura infância de um país que parece padecer eternamente de saudades do futuro.”