quinta-feira, 2 de junho de 2022

Poema sobre cheiro, RCF





Naquelas tardes neutras
cheiravas a navio.
Cabelos invadiam o voo dos ventos
e se faziam asas
que em vez de pena
usavam fios sonoros e socorros de cabelo.

Se tu fosses uma morta,
mesmo com a fetidez da morte,
ainda seria um odor vital.
O morto não tem narinas,
não pode respirar o fim.
O teu cheiro é vontade de ser carne.
O teu cheiro – vapor –
é um dos estados da carne.

Meu cheiro tem lembranças
de outros cheiros teus.
Nada mais sugestivo
que o olor do canto
– o canto, por sua vez,
traz teu cheiro em forma de som.

Gostaria de ter um armário de cheiros
– não o armário de cheiros
dos perfumes que são bibliotecas
de cheiros – mas a estante
guardada dos mínimos anos.
Lá poderia me apropriar
do raso, do fluido,
do inexato, de ti.
Meu cheiro tem vários sentidos.



(do livro A máquina das mãos, 2009, prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras 2010)


(imagem internet: di cavalcanti)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Muro das lamentações





 
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Pendurei um século 
na parede do escritório.


As paredes 
transformam tudo em açude.


Minha mesa tem cavernas 
onde o labirinto das teclas
penumbram becos sem saída
e indóceis diques
mergulham a mente naufragada. 


(Matadouro de vozes, 2018)



segunda-feira, 30 de maio de 2022

Cansaço dos buquês, poema RCF













De carro ou a pé,
foge da bifurcação que é uma forquilha
que lhe atira a primeira pedra.
Pedestre,
não tem mais nenhuma ânsia de pé.
Queria andar de quatro,
quatro pés no chão,
quatro mãos na terra,
quatro dimensões do medo,
quatro estações florescem no cérebro.
Veraneia devaneios,
hiberna sentimentos,
no outono, caem folhas de papel,
floresce seu desgosto
– um buquê de mágoas
que não murcham.



(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)