quarta-feira, 8 de junho de 2022

O viúvo 18





O jardineiro vem uma vez por semana. Poda as árvores pequenas, corta a grama, limpa a varanda, trata das árvores frutíferas, arranca as ervas daninhas, enfim, trata o jardim com a necessária atenção de profissional. Mas não tem mãos delicadas para outras artes como as flores. As rosas acontecem. Simplesmente, acontecem.

Nascem não sei como, surgem uma manhã e lá ficam, depois desaparecem. Nunca mais voltam a nascer. Não há adubo, corte ou trato que dê jeito. E se as quaresmeiras, ipês ou buganvílias dão colorido, sopram seus ventos de folhas roxas, amarelas e violetas, é mais porque a natureza persiste, não descansa, ignora o homem e suas mãos toscas.

Nada é precipitado no jardim. Torna incurioso o fantasma de Lídia, com suas queixas descabidas e mortas.

E mais importante: o jardim manda-me o recado de que é preciso resistir contra as mãos inábeis dos homens. É preciso acreditar em algo. Ter idéias que é a maneira de dar fruto, porque não dar fruto é uma ação contrária à natureza.

Às vezes aborreço-me. Quero mandar o jardineiro embora. Acredito que seja luxo, desperdício, que não o mereço e, nesses momentos, me surge dúvida maior, não é mais o jardim que interessa, o jardim é subsidiário de outra emoção que também considero exagerada e perdulária, a de que, assim como o jardim, não mereço companheira, não mereço amigo, não mereço agrado dos alunos, que desperdiço a vida, seco como folha morta, não posso me dar prazer ou luxo de ter jardim, amor, amizade e outros sentimentos prazerosos, incompatíveis com o salário, o modo de viver, a paixão e a casa com jardim.

Logo olho para o jardineiro com outros olhos. Já não está ali o sujeito desajeitado que não sabe cuidar das plantas e flores. Ali está na minha frente a personificação do gasto que não posso cometer, do amor que não me permiti. O jardim lá está, indiferente às angústias.

Queira eu ou não, o jardim desorganiza-se, cria sua própria ordem e apenas surge silencioso, recluso, sem insistência.

            Meus pés não me merecem. Quando quis ser andarilho, o médico cortou a pretensão. Mas tenho persistido, porque o caminhar para mim é vital. Desconfiança de que o médico, assim como me condenou à imobilidade, me condene agora a outro tipo de imobilidade. Desconfiança do diagnóstico: O pensamento faz mal a você. Diagnóstico medonho. Mas como me impedir de pensar?

         Quer que eu evite os pensamentos mais elaborados, raciocínios delicados ou sofisticados que me levam à angústia, então há de cortar o mal pela raiz e neste caso o mal é o pensamento intelectual e a raiz o hábito de exercitá-lo.

         Volto ao pé – que do pé passei à cabeça –, meus pés são tortos, voltados para dentro, não manco, ninguém percebe o defeito. Só não posso dar grandes caminhadas. Assim como não posso abusar do pensamento, o que também me atrai. O primeiro me leva a dores musculares e até ósseas; o segundo me provoca a angústia infernal, dói-me a alma, que não tem ossos, dói-me o espírito que me abate e me deprime.


(O viúvo, Brasília, LGE, 20015)

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segunda-feira, 6 de junho de 2022

A solidão do viúvo, por Vera Lúcia de Oliveira


                                                               
Livros de Ronaldo Costa Fernandes | Estante Virtual



            Dizem que o verdadeiro luto se carrega no coração. Mas o viúvo de que vamos falar carregava-o nas costas, como se carregasse as dores do mundo, ou um enorme peixe. Ou a pedra de Sísifo. Esse viúvo, sem nome, pois não o diz, é um intelectual refinado, professor universitário, solitário e angustiado. Esquisitão. É a personagem que dá título ao romance O viúvo, (Brasília: Ed. LGE, 2005), de Ronaldo Costa Fernandes.

            Ronaldo trabalhou a personagem com esmero. Fez o leitor vê-la, como num raio X, por dentro de seus complexos e conturbados pensamentos de um ser pensante e estoico, que leva o fardo da vida sem esperança nem indignação. Existencialista, beirando a indiferença, tenta retomar a vida após longo período de luto, em que cumpriu tristeza, e a rotina de trabalho como professor universitário, literato, no sentido forte da palavra, que foi despertado um dia pelo desejo de uma mulher que o abordou no estacionamento, à noite, em lugar mal iluminado e perigoso, como que o resgatando de sua noite escura. Seguiu a moça-aluna de blusa de seda. E retomou o gosto pelo amor, pelo corpo, já meio cansado de desejar. E deu-se nova chance, na mesma casa velha, com cheiros de passado, e a mesma velha empregada D. Benedita, quase um estorvo. E as duas mulheres, a morta e a viva disputavam a casa de maneira desigual, pois a morta, Lídia, falava através das cadeiras e de tudo o que havia tocado, deixando Fernanda, a viva, sem ter como revidar, pois “os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer”, como vimos em Mário de Andrade.

            E o viúvo sonhava muito. Os sonhos, na verdade pesadelos, não o abandonavam. São imagens tremendas que revelam uma tendência à dissociação psíquica de dissolução do eu:

“Não sou mais eu, sou vários e não sou ninguém (...). Tenho também várias cabeças, a que pensa, a que mandam pensar o que a máquina pensa, o que pensa os outros, o que pensa o que pensa que pensa independente do que pensam as pessoas que pensam pelos que não pensam.” (Pág. 22)

Ou ainda: “Lídia me fazia sentir boneco de pano, minhas vísceras eram de pano, serragem, se me abrissem, pulariam para fora restos de panos, aniagem e pó”. (Pág. 33) Algo próximo da clivagem, responsável pela entrada do sujeito na psicose, segundo a psicanálise. As imagens que o perturbam vão de coisas tornadas mínimas, liliputianas, como ele diz, até as agigantadas, elefantizadas. Nesses sonhos, o viúvo vê-se tragado pela casa que está prestes a ruir. Tudo muito simbólico e revelador de seu estado emocional e psíquico. A casa aqui não é só uma casa, é todo o universo em torno do qual ele gira; é o imaginário que o invade: “Quando acontecem as rachaduras é um pouco do intestino também das paredes que quer sair para fora.” (Pág. 15), ou a casa é que é invadida por suas ruminações, e treme, e deixa as “paredes insones” e até dá voz à pia da cozinha, que ele detesta. Tudo está em carne viva, como nos quadros de Soutine. A casa é a caixa de ressonância, é o espaço mais que físico, é a extensão de seu corpo, e também o contrário: o seu corpo era um mero apêndice que poderia ser expulso a qualquer hora “como um organismo vivo expulsa o que lhe é estranho”. (Pág. 27) Yin-Yang.

            Mas o que o distingue é a consciência da própria loucura. Não a dos doidos de pedra, mas os da pequena loucura, da dose diária de sandice de todos nós. Diz ele:

“se as pessoas são como eu, elas terão sua dose de loucura escondida, fechada, como se leva dinheiro avulso e não se quer perder e então aperta o velcro ou fecha o zíper do calção. A pequena loucura, mesmo que seja pequena, não se expõe socialmente, vive aprisionada, principalmente em forma de desejo ou pensamento proibido que surge repentino sem que se puxe por ele. Um desejo molesta a gente, chega em hora imprópria.” (Pág. 19).

            O sentimento desse viúvo, que se repudia por ter traído Lídia já no leito de morte, bem como o sujeito decente que ele pensa ser, tem a sua origem no conflito entre o desejo e a Lei; entre o “eu quero” x “eu não posso”, fonte de toda neurose, ensina Freud. E não podemos esquecer que ele não teve infância, e que assistiu ao enterro do pai. Infância recalcada pelo adulto: “Minha infância não tem rosto.” (Pág. 44) E, por ser recalcada, volta a incomodar, insistindo em se presentificar “de forma fantasmagórica, seja em sonho ou em imagens díspares e bizarras, cujo significado desconheço e temo” (Pág. 44), diz ele. Do menino triste fez-se o homem solitário, naquela solidão noturna dos viúvos, como diz a canção de Alceu Valença.

            Se quiséssemos dar uma imagem para o mundo desse homem sofrido seria algo como a “Guernica” de Picasso que, à parte a historicidade, revela um mundo fragmentado em que pés tortos, mãos trêmulas, pernas independentes, cabeças, braços, numa dança macabra habitam a sua mente. Até as mãos, que um dia precisou enfaixar, gesticulam e pensam por si mesmas. Um mundo de partes desconexas, antimetonímicas, que não falam pelo todo. Um homem aos pedaços tentando se integrar. Trabalha sem alegria na universidade, embora sua paixão verdadeira sejam os livros, a literatura, esta que atraiu Fernanda, a mulher dos números, mas também unidos doravante pela palavra. (Palavra que ele perdeu quando entrou em coma, destituindo-o do lugar da fala, de ser falante.) Palavra que também o humilha por fazê-lo escravo dos outros, do pensamento alheio. Sente-se incapaz de ter pensamento próprio, e isso também o mata, Angustia-se, sente-se uma fraude. Temos aqui o que Winnicott chamou de “falso self”: o sujeito que desenvolve uma segunda personalidade para ocultar a primeira, ocultar justamente para protegê-la da fragmentação do eu – nosso tudo. Vejamos o que diz o viúvo:

“Algo em mim diz que faço tramoia, que engano os alunos, que me faço passar por professor quando nunca fui professor. Não me reconheço em sala de aula, não me reconheço naqueles corredores.” (Pá. 83)

E, como um camaleão, funde-se com o ambiente. Trata-se da dependência e servidão a que o ser humano está condenado, diz Lacan. Sente-se aprisionado pela universidade onde até as janelas conspiram contra ele, pondo também o pé na paranoia. É um corpo estranho para si próprio. Corpo que tem papel crucial no romance, como peça-chave do estranhamento que perpassa o texto.

            Assim como tem presença na casa mesmo depois de morta e tem presença-ausência no corpo das mulheres que ele conhece, Lídia tem presença na narrativa, não linear, lembrando ao leitor que ela está viva na lembrança (ambivalente) do marido, este, sim, já meio morto. São dois tempos que se justapõem, que se alternam em ondas no fluxo da consciência, numa narração precisa, em que uma onda arrasta outra atrás de si, dando impulso, fôlego a esse romance intimista, sofisticado, diga-se, extraordinário.

            Mas não poderíamos encerrar sem voltarmos a D. Benedita, a empregada da casa, sim, da casa, e não mais do viúvo, pois a sua função nesse espaço cresce na estória enquanto a dele diminui em importância. O prato da balança pesou mais para o lado dela. Por quê? Porque, assim como as plantas endoidecidas tomaram conta do jardim após o desaparecimento do jardineiro, D. Benedita, surda como uma porta, toma conta da casa da patroa sem ouvir o patrão. Percebe, de alguma maneira, o definhamento do professor que, tomado, talvez, pela pulsão de morte (Freud), vai cedendo lugar de mando a ela. Como as ervas daninhas do jardim, e numa perfeita simbiose com a casa, seu espaço de existência, ela embruteceu, criou raízes e espinhos. E o viúvo, que se fingia de vivo enquanto fazia palestras na universidade, agora pode fingir-se de morto na casa, que é seu “bicho hospedeiro”, e ele, “o verme que dele se alimenta”. (Pág. 150)

            E, dessa forma, regredido, buscando a condição de verme, ou quem sabe ainda a anterior a esta, a inorgânica, cumprindo o ideal da pulsão de morte, encontre ele a paz verdadeira, o Nirvana.



28.06.2020 (Jornal de Fato, Mossoró)