quinta-feira, 21 de julho de 2022

Balaiada, novo romance

 





Caxias, Maranhão

 

Atravessar aquele umbral da porta da fazenda significava deixar para trás três cidades, ingressar no passado como se tudo o que vivera fora um sonho do qual acordaria ainda sem distinguir vigília e devaneio. Voltava a Macaúbas da minha infância, os campos a perder de vista, as moendas, os trabalhadores no eito, as plantações de milho, de algodão.

A raiva do meu pai era severa, embaraçosa. Temia beijar o homem iracundo ou ter medo do pai amoroso. Este último me ensinava a criar bicho de seda, orgulhoso da semente de amoreira que fizera vir de Portugal, a cultivar entre nós mais que a transmissão do conhecimento, senão tecer a cumplicidade da descoberta do mundo.

À noite, meu pai montava o cenário para os músicos amigos dele. O dr. Morizot na flauta; no piano, o Pinho Gonçalves; no violino, o boticário Arlindo e outros mais, todos servidos de vinho que meu pai mandava trazer do Porto por intermédio dos irmãos Guimarães. Da baixada, vinham os jaçanãs e os queijos de São Bento.

Meu pai não era tão alto. Quando me tornei adulto, me dei conta que meu pai era mais baixo que eu, parecia que me roubavam parte da minha infância, com ela parte do meu pai. De barba cerrada, os bigodes grandes, retorcidos, a fragrância de água de cheiro que passava após tomar o banho frio com um aparato que mandara construir para que, de dentro da bacia pendurada, saísse um fluxo de pingos contínuos e gelados.

Vestia-se com aprumo naquele calor infernal de Caxias. Relaxava um pouco na Macaúbas. Calçava as botas, punha camisa branca sem gola, colete com quatro bolsos –, a maior invenção da humanidade para meu pai não fora a roda, mas o bolso – e neles punha de tudo que podia lá caber. Em Macaúbas, andava armado. Minha mãe não gostava de que me mostrasse arma.



(Balaiada. São Luís: Academia Maranhense de Letras, 2021)


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quarta-feira, 20 de julho de 2022

Memorial do negrume, poema RCF


 


 

 

 

O tempo com suas quatro patas de caranguejo

não pode andar para trás e para o lado

como nos sonhos? Os homens e sua imensa

perda de equilíbrio por onde se acercam

ao salitre das chaves moribundas, escondidas da lucidez,

para que não nos envergonhe

de guardar no bolso de lamúrias

a fechadura do inconsciente.

 

Difícil mergulhar no arrecife de coral no meio da insônia.

Os pássaros noturnos

têm hábito de negrume.

Todo monumento

uma estátua em homenagem ao fim.

As cidades são cemitérios

e os monumentos enormes lápides.

 

Visitar os landmarks dos lugares

e trazê-los na retina dos álbuns,

miniatura de vida, um souvenir barato

e que descasca, a remexer-se na penúria

da pequenez quando se alarga

e aumenta a prisão ao ar livre dos náufragos.

Volta o caranguejo do câncer

que decidiu submergir

na lama dos arquivos mortos.





terça-feira, 19 de julho de 2022

Hapiness is a warm gun

 







 Um idioma me fala tanto

que me traduzo e me transcrevo

em palavras sinistras e estrangeiras.

 

A torre de Babel

me sobe à cabeça

e me torno a

indizível e solitário

em meu esperanto.

 

Minha voz ouve

a dublagem dos meus tropeços

e meu dicionário de antônimos

me nega a arma quente da felicidade.







segunda-feira, 18 de julho de 2022

Um homem é muito pouco 30

anunciação por Otto Dix (1891-1969, Germany) | | WahooArt.com

            
A guerra piorou, Vicentino teve de deixar Luanda às pressas. Antes Altiva disse que ia com ele para o Rio de Janeiro. Vicentino foi morar perto da Cruz Vermelha e no apartamento não havia como enterrar ninguém porque a cova era rasa. Podia ladrilhar o chão que não havia possibilidade de enterrar o passado no chão do apartamento. Vicentino pensou que estava livre de Altiva, mas ela amaldiçoou e disse que o esprito dela ia encarnar em outra negra brasileira ou não.

            A princípio Vicentino foi trabalhar com mármore. Seu pai tinha negócio de marmoraria em Luanda e vendia muito para cemitério e piso de parede de banheiro dos colonos ricos brancos de Luanda. O sono perfurado de maldição de Altiva voltou aos poucos, mas ele não deixava de lembrar o terremoto da voz de Altiva, no baixo da sala, blasfemando e augurando desgraças brasileiras. Vicentino depois arranjou serviço na morgue e não era serviço de destripar defunto que não era médico nem tinha curso de coisa parecida. O trabalho era de escritório. Certa vez Vicentino baixou até o necrotério. Havia uma negra morta que lhe falou em linguagem de morto e com o mesmo tom de vulcão azulejado de Altiva. Ele se assustou e respondeu pra morta.

            Olha, eu gostava muito de Altiva, se pudesse eu fazia qual o príncipe português que mandou desenterrar a amada que uns crápulas da corte assassinaram para que ele não casasse com plebeia e colocou a gaja no trono para que reinasse como rainha morta ou morta rainha.

            Se pudesse desenterrava a negra Altiva de Castro e a punha na sala, vestida de roupa de mulher branca e não de roupa de mucama negra e a família dele viria e ela haveria de estar na sala, morta e vestida, sem voz vulcânica azulejada.

            Depois Vicentino trabalhou num restaurante como garçom. O que o povo não sabia é que Vicentino trabalhava em ofícios menores, mas tinha com ele boa quantia para montar negócio. Vicentino só esperava conhecer melhor o Rio de Janeiro e a maneira brasileira. Não havia guerra, os negros não eram perseguidos nem colonizados, não havia guerrilha, nem ódio. É muito complicado ter que viver com o coração furado. Vicentino começou a frequentar Copacabana para ver como funcionavam os bares e restaurantes. Numa noite, no calçadão, num bar cheio de turistas, Vicentino sentava sua tristeza angolana debaixo de um inútil guarda-sol quando se aproximou Ariana em forma de prostituta e, como ela disse, com voz de vulcão azulejado e a pele tão negra quanto a mais negra solidão.



(do romance Um homem é muito pouco. São Palo: Nankin, 2010)