sexta-feira, 4 de março de 2011

Juan Carlos Mestre-Poesia espanhola contemporânea

Salmo dos Bem-aventurados


Tradução: Ronaldo Costa Fernandes

                                                           Ávida vena, dame tu cordel.
                                                           Antonio Gamoneda




Bem-aventurado o que aos quarenta anos ainda não conheceu a recompensa e chama virtude o cordão de um sapato,
o homem sem convicção que deitado na relva passa o dia dormindo e discute sobre o esforço com os gafanhotos.

Bem-aventurado o que suporta o empréstimo da verdade, o escavado em pedra e o que construído de palha é alternadamente senhor do nada e rei de um só vassalo.

Bem-aventurado tu que sem te chamares Juan não és outro que Juan o explícito, o pai do ar cujos filhos herdarão as máquinas de moer vento.

Bem-aventurado o que passou a noite com a insignificância, porque embelezado pela privação será dele alguma vez a ausência,

o que é vizinho de dois bocas, o da voz miúda a que lhe falta um dente, o homem sem pretexto que teve um asno, uma boina, um bode.

Bem-aventurado o que ante o argumento da pólvora torce o focinho de lanterna e fala alto, o que paga seu uivo com a vida, o que num instante é articulação de lobo e árvore ajoelhada.

Bem-aventurado o pássaro cujo canto desperta o coração de uma mãe nos galhos da tristeza.

Bem-aventurado o manco e seu violino de oxigênio, a abelha de açúcar que suga a superfície dos licores brancos.
Litografia de J.Carlos Mestre

Bem-aventurado o viajante que vaga no concêntrico e traduz o limite, a fertilidade do sacrifício, a teologia das medalhas da lua.

Bem-aventurado o que emigra à margem de seu amor, porque dele será a estranha fruta do animal de sábado.

Bem-aventurado o esqueleto de Rimbaud e seu pássaro influente, único herói no festim do crânio.

Bem-aventurado o que diante da alusão aos espelhos se volta pensativo e ignora azul e amavelmente suas lágrimas.

Bem-aventurado o imortal do morto, a desculpa do chapéu e seu balido, o repentinamente desenganado no paladar das tábuas da morte.

Bem-aventurado a andorinha de madeira que faz o menino pulsar antes de conhecer o sexo.



Juan Carlos Mestre, poeta e artista visual nascido em Villafranca del Bierzo, em 1957, é autor de Siete poemas escritos junto a la lluvia (1982), La visita de Safo (1983), Antífona del otoño en el Valle del Bierzo (Premio Adonáis, 1985; 2003),  Las páginas del fuego (1987), La poesia ha caído em desgracia (Premio Jaime Gil de Biedma, 1992), La tumba de Keats (Premio Jaén de Poesia, 1999, escrito durante sua estada em Roma) e, por último, El universo está en la noche (2006), obra singular em que recria mitos e lendas mesoamericanas.  Entre os numerosos livros de artista gráfico de que Juan Carlos Mestre participou está o Cuaderno de Roma (criado em 1997-98 e editado em 2005). Uma seleção de suas poesias foi publicada em Las estrellas para quien las trabaja (2007). Como artista visual expôs sua obra gráfica e pictórica na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. Obteve Menção Honrosa do Premio de Grabado de la Calcografía Nacional em 1999. La casa roja é seu mais recente trabalho poético.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Adeus à literatura, Carlos Tavares escreve sobre Moacyr Scliar






“Como um cavalo alado, prestes a alçar voo, rumo à montanha do riso eterno, o seio de Abraão. Como um cavalo, na ponta dos cascos, pronto a galopar pelo pampa. Como um centauro no jardim, pronto a pular o muro, em busca da liberdade.”
Assim o gaúcho Moacyr Scliar põe o ponto final em seu romance mais traduzido e premiado, O centauro no jardim, de 1980, situado por especialistas em literatura entre as 50 melhoras narrativas longas de língua portuguesa, colocado ombro a ombro nas prateleiras do mundo com títulos de ícones da criação romanesca como Graciliano Ramos, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Guimarães Rosa. Assim o gaúcho que se indagava um ser em liberdade e humano antes de tudo, demasiadamente humano, se despediu ontem de suas histórias de humor, amor, denúncia e vida.
Se há uma obra entre as escritas pelo autor de Saturno nos trópicos e de O tio que flutuava que funciona como uma súmula de todas as que levam a sua assinatura ou ao menos das principais esta é O centauro. É provável que ao longo dos últimos 30 anos Scliar tenha buscado se superar — em forma e conteúdo — além deste romance de pura alegoria e realidade, se é possível o estranho binômio assim surgir sem merecer explicações filosóficas, mas também é provável que não tenha conseguido, o que não faz a mínima diferença em termos de tentativa de imprimir-se aqui um peso em sua escalada literária. Alguém que escreve livros como O ciclo das águas e O exército de um homem só  (1973)não precisa se esforçar para se superrar em nada.
A obra de Moacyr Scliar surge há meio século no panorama da literatura brasileira de temática urbana (e até mesmo rural) como uma escrita de renovação do gênero nas décadas de 1960 e 1970, em pleno domínio da repressão militar. Configurada em chaves simbólicas e erguida sobre um veio de metáforas das mais ricas no ideário político e social da literatura brasileira contemporânea, pode-se afirmar que existe apenas um tema central na bibliografia de Scliar - o judaísmo.

A partir deste elemento temático, calcado em profundas raízes hebraicas na busca de um Abraão do Velho Testamento ressuscitado em vários personagens (vide o Capitão Birobidjan, de O exército …; e Esther, de O ciclo das águas) modernos — como aqueles que serão em um só nome o eterno pai de todas as raças e o nume que mostrará ao homem o caminho da liberdade — o médico escritor nascido no bairro do Bom Fim, reduto judaico de Porto Alegre, se concentra na construção de diversos subtemas cifrados nas questões social, da identidade e da diáspora. E aqui, ressalte-se com todas as tintas, não importa se este fala da dispersão de povos judeus ou de indígenas em deslocamento, de afro-brasileiros ou de fanáticos de ascendência islâmica.

Segundas intenções
Desde O carnaval dos animais (título da obra sinfônica do francês Camille Saint - Saëns que inspira o gaúcho na construção de um novo zoológico musical. O de Saint-Saëns começa com O leão e termina com O cisne, como símbolos de bravura e de leveza), de 1968, Scliar funda uma literatura dedicada a subverter os padrões estatuídos da época ainda de matiz realista no Brasil e a renovar um fabulário de longa tradição — com ecos de um La Fontaine, de um Esopo, ou dos irmãos Andersen, do folclore brasileiro — para poder falar de ditadura, de racismo, de fobias, perseguições, desumanidade.
“Uma vez me perguntaram o que eu queria dizer com o meu livro de estreia, O carnaval dos animais. Eu disse que estava falando sobre a censura, sobre a ditadura, sobre a violência. Parecia que aquilo não ia acabar junca. Mas acabou, ainda bem”, disse Scliar em depoimento ao Correio, em março de 1989, para a reportagem “Queima de arquivo, o último ato da censura” sobre os fantasmas do regime de exceção. Na época, a Polícia Federal criara comissões de incineração para queimar os pareceres dos censores sobre filmes, peças de teatro, músicas e literatura, o que não ocorreu.
Na verdade, o autor de A majestade do Xingu, de 1997 — obra em que homenageia Noel Nutels, o sanitarista judeu de origem russa e o o estilo roseano de escrever — sempre esteve às voltas com o medo, a paranoia, o trauma da perseguição, pela sua própria história familiar, pelo seu ethos ancestral de pertencer a um povo historicamente agredido, violentado e explorado. Pelo fato de ser judeu e como o Shylock, de Shakespeare, a quem dedica o conto “O doutor Shylock”, que está em O carnaval, ser forçado a viver se esquivando da discriminação dentro e fora da realidade, dentro e fora da história.
E o mais irônico, para não dizer cruel, da trajetória dos judeus, no Brasil e no mundo, é que se eles tentam muitas vezes escapar de movimentos de perseguições cíclicos, como ocorreram na Península Ibérica dos séculos 15 e 16, principalmente; na Rúsasia dos czares; ou durante a consolidaão do nazismo e em outras épocas, acabam em sua eterna diáspora defrontando-se com ditaduras, por exemplo, como as que dominaram países da América Latina na segunda metade do século passado.
Por isso e por outros motivos a maioria dos personagens de Scliar indaga a própria origem e o fato de ser excluído. A centaura Tita, em vários monólogos e diálogos com o marido Guedali, vive o tormento do ser ou não ser, entre a fúria do outro que a espreita e o silêncio dos jardins que um dia deseja saltar para a liberdade. “Por que não posso ser como as outras?”, indaga triste, infeliz, enquanto o centauro marido pensa: “Porque você é diferente, tem cascos, lombo, crina…”, mas não diz para não feri-la.
Já a Esther de O ciclo das águas reproduz em parte os movimentos de A pequena sereia, de Christian Andersen, ao se ver atraída por uma estátua de sereia. Trata-se de um personagem fundamental, na obra do gaúcho, que aporta em terras do Sul após perder o marido em um cruzeiro e pasa a lutar para educar o filho sozinha. Já em o Capitão Birobidjan, cujo nome é Mayer Guinzburg, um judeu que quer reformar o mundo, o escritor coloca em sua pele e em sua alma o fardo do sonho da igualdade e da construção de uma sociedade justa.
Aliás, O exército de um homem só era leitura obrigatória nos anos de 1970/80 por ser uma bela e contundente metáfora da repressão revertida em utopia. Toda a obra de Scliar sintetiza essa ilusão quixotesca. E ele não recua um centímetro em sua perseguição, apesar dos percalços.
Moacyr Scliar, ao lado de Samuel Rawet (Contos do imigrante) e de outros escritores de sua geração, no Rio Grande do Sul e além das fronteiras, faz parte de um seleto grupo de criadores responsáveis pela revalorização das letras brasileiras — ao lado de um Érico Veríssimo, de um Rubem Fonseca, José J. Veiga, Campos de Carvalho, Sérgio S’ Antanna, Roberto Drummond, entre outros.

Carlos Tavares, Correio Braziliense (Carlos é jornalista e escritor)


imagens retiradas da internet