sábado, 1 de setembro de 2018

Horas mortas, poema RCF




Vou para o campo
para ser contemporâneo das flores.
Mas levo a praga da cidade comigo.
Tudo aqui é químico
desde o adubo até as árvores
plantadas para ser papel ou palito
no campo de concentração das fábricas.
Evitar tocar a infecção que é o outro.
O problema é que para certas doenças
e ideias não há vacinas
(e nem mesmo se pode dizer que,
como o sarampo, quem pegou a enfermidade
estará sempre imune).
Quero de volta a moléstia da juventude,
o magazine de descobertas,
em cada balcão a oferta de hormônio,
a vitrine dos desejos
e os elevadores da emoção.


Paris, abril de 2011

(Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)

imagem retirada da internet: rodtchenko

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Cemitério, poema RCF



o cemitério
de um homem
não é composto
                    apenas de mortos
                    mas almas verticais
                    que se enterram
                                 na carnificina dos minutos

a memória pesa
– isqueiro de prata no bolso
cada chama
                     não responde
embora queime
                     mais que a lucidez

são almas móbiles
                     de Calder
que se agitam
no espaço
entre ausência
e eternidade

visto-me
– meu terno é violento – ,
não ouso pedir
                       a demissão
                       da telegrafia
                       das lembranças



8.9.98

(do livro Andarilho, 2000)


imagem retirada da internet: andarilho

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Lições, poema RCF



Existir é a prova dos nove.
Um dia me cansarei de ser
a nota dissonante
e abandonarei a lição de casa,
a lição da rua, a lição da vida,
oh, Deus,
todas as lições que nunca aprendi.
Lição se aprende com o corpo.
O corpo tem sua matéria,
sua disciplina, seu passar de ano.
A natureza ensina com galhos,
cada folha que cai é um ponto.
Por toda parte há as esquinas das vírgulas.
Tenho medo do abc das torrentes,
da aritmética das montanhas,
da História das minhas dores.
Minha dor é um fruto
que, amadurecido, não cai
e vai apodrecendo o galho,
o caule e a raiz tormentosa.


(do livro A máquina das mãos, 2009)

imagem retirada da internet: almada negreiros

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Os diabos, poema RCF








As cordas do redemoinho
sobem ao céu
tranças loucas
feito peão.

O lobo é o diabo do cordeiro
o capitão do seu sargento
o cachorro do gato
o inspetor do transgressor
na ciranda dos diabos e dos pobres
todos somos pobres diabos.

Os caboclos mascam fumo
sentam-se nas calçadas
das cidades do interior.
Os caboclos são pobres diabos.

No morse dos olhares
a cidade se move
e os bondes rangendo
os dentes
em São Francisco
ou Santa Tereza
são pobres diabos de ferro.

O diabo é que o rico
é diabo mas não é pobre.
E se tem um diabo
para o diabo rico
– que o pode fazer pobre diabo –
é a sua consciência,
seu espírito atormentado,
que empobrece o diabo rico
e o torna um pobre diabo.





(Estrangeiro, 1997)

imagem: sverrir thorolfsson

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Anna Akhmátova



Anna Akhmátova nasceu a 23 de junho de 1889 em Odessa, então ainda Império Russo, hoje Ucrânia. Com seu primeiro marido, o poeta Nikolai Gumiliov (1886 – 1921), Serguei Gorodetski (1884 – 1967) e ainda Ossip Mandelshtam (1891 - 1938), formou o grupo de vanguarda dos Acmeístas, ligado à tradição do simbolismo russo, em especial à obra de Alexander Blok (1880 - 1921), apenas cerca de uma década mais velho que eles. Anna Akhmátova estreou em livro com Vecher ("Noite"), em 1912, seguido de Chetki ("Rosário") em 1914. O início da Grande Guerra (1914 - 1918), da Revolução Russa (1917) e dos terríveis anos de Guerra Civil (1918 - 1922) põem fim à chamada Era de Prata da Poesia Russa. Alexander Blok adoece e, necessitando de tratamento fora do país, morre a 7 de agosto de 1921 à espera da permissão do governo para viajar, concedida 10 dias depois de sua morte; Nikolai Gumiliov é fuzilado poucos dias depois como contra-revolucionário; Akhmátova e Mandelshtam, considerados poetas "aristocráticos e incompreensíveis para as massas", têm cada vez mais dificuldade de publicar, até que Mandelshtam é preso e condenado a trabalhos forçados no Gulag (mesmo destino de Liev Gumiliov, filho de Akhmátova com o poeta Nikolai Gumiliov), acontecimentos que encontrariam seu memorial em livros de Akhmátova como Anno Domini MCMXXI (1921) e Réquiem, escrito entre 1935 e 1940.

À MUSA

Quando, à noite, espero a tua chegada,
a vida me parece suspensa por um fio.
Que me importam juventude, glória, liberdade,
quando enfim aparece a hóspede querida
trazendo nas mãos a sua rústica flauta?
Ei-la que vem. Soergue o seu véu,
olha para mim atentamente.
E lhe pergunto: "Foste tu quem a Dante
ditou as páginas do Inferno?" E ela: "Sim, fui eu".


Anna Akhmátov

(tradução de Lauro Machado Coelho)

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

A lâmina do distúrbio, poema RCF


 




 

 
Que guerra é essa, em que se desconhece
o inimigo, nem quando virá, se é doce ou rude,
que rosto tem, se rosto há, onde se esconde,
quando nos afrontará e que armas usará,
se armas usa, ou se a luta outro método utilizará.

Que guerra é essa que se oferece à luz da pouca razão,
que me põe na arena de pluma da perda
e me escolhe a lâmina de distúrbio que me atravessará
sem que me destrua ou divida, embora seja vítima e trespassado
pela dor de existir sem existir os que em mim existiram
e em mim existirão e só com o tempo,
que tem navalha e laqueadura,
possa remediar o que remédio
algum cura, dá sossego ou faz viver.




(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)


domingo, 26 de agosto de 2018

Minha fraqueza é meu único talento, poema RCF


 Resultado de imagem para Robert Frank

 Sou apenas um homem
e um homem é muito pouco.
Quando era pequeno pensava
que a felicidade pertencia aos adultos.
Ou se desenvolvia como seios em moças
e pelos em rapazes.

Vivo nesta sombra de 40 graus.
Em mim, há sombras tão quentes
como me expor ao sol.
Que sombras projeto,
que grau de temperatura
têm minhas sombras?
O que me torna forte
é sucumbir às minhas fraquezas.
Sou uma sombra
do que projetei para minha vida:
sem profundidade, apenas silhueta,
sombra de sombra que me escurece
e me achata no chão ou muro,
onde me espicho
ou impedem a minha passagem.
Forma de existir apenas como espectro.
À noite, a sombra sai dos meus olhos
e se prega em volta de tudo:
em algum canto
desafinarei minha sorte.



(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)