quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Escrever à sombra, poema RCF


caminha
na avenida
larga que o estreita
o pensamento febril
e indefinido de mercúrio
ouve a tortura do verbo
a insinuar termômetros
os pés de patíbulo
inchados de tanto alçapão

leva a vida anônima dos condenados à pena

aqueles que escrevem
prescindindo do alarde
das trombetas
de caça dos jornais
a sinfonia nunca tocada
na miséria
do silêncio das pautas
e do sigilo
dos pentagramas

de nada valeu
tantos velames
em serifa
varar a noite
lendo Joyce, Pound ou Nerval
a exposição
inútil das miudezas
o receituário das alterações
metabólicas
a farmácia
de manipulação onde está subjugado
mentalmente
à droga da metáfora

(do livro Andarilho, 7Letras, 2000)

imagem retirada da internet: by ron mueck

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

O náufrago aéreo, poema RCF





Logo virá a noite
com seu casco
cobrir o corpo das marés.

Os aviões farejam na pista
o capim cinza do asfalto.
O aeroporto são luzes
gritando e soluçando
no espaço de um pouso
e de uma decolagem
– a vida entre aspas.
O display não dá
a hora do pouso final.

Embarco
e vou tão estrangeiro e íntimo
como a poltrona dos aviões.
Para nós que sobrevivemos
ao amigo suicida, ao louco
e ao que morreu na política,
a vida é o pasmo
de saber-se náufrago do ar.

(do livro Estrangeiro, Rio: Ed. Sette Letras, 1997)