sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Fernando Pessoa político por Adelto Gonçalves



[Pessoa, em retrato de Almada Negreiros]

'Talvez o leitor conclua que o poeta como pensador político fora contraditório ou ingênuo. Mas deve levar em conta que não é a forma que define um bom governo, mas o seu caráter'

Adelto Gonçalves



I

Não é tudo o que um mestre escreveu que merece a definição de obra de arte. E, claro, muitas produções que fazem parte da obra desse mestre só são ressuscitadas porque, em função de outros textos, tudo o que escreveu passa a despertar o interesse dos estudiosos e dos leitores. É o caso de poema “Em memória do Presidente-Rei Sidónio Pais”, de Fernando Pessoa (1888-1935), que acaba de ganhar uma nova versão em italiano, Alla memoria del Presidente-Re Sidónio Pais (Perúgia, Itália, Edizioni dell´Urogallo, 2010), em tradução do professor Brunello De Cusatis, autor também de um ensaio-introdução.

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O poema ganha importância exatamente para quem tem interesse em conhecer os matizes do pensamento político de Fernando Pessoa, que nunca teve nada de esquerdista; pelo contrário. Era um antidemocrata por definição, adepto de uma "monarquia pura", como observa De Cusatis, tirando a expressão de um artigo do próprio poeta, "A opinião pública".

Essa monarquia, porém, seria um tanto inusitada, pois baseada na opinião pública, quem sabe um sistema de governo que representasse a continuidade histórica interrompida com a morte do rei D. Sebastião (1554-1578), na batalha de Alcácer Quibir, na África, contra as tropas do rei de Marrocos.

Como se sabe, em 1580, com a morte do cardeal-rei D. Henrique, sem que tivesse sido designado um sucessor, Filipe II de Espanha, neto do rei português D. Manuel I, invadiu Portugal e submeteu o país a 60 anos de domínio, tornando-o uma província espanhola, tal como havia ocorrido com a Galiza, que continuou fazendo parte do reino asturiano-leonês. Como é natural, os portugueses viviam descontentes e compreendiam que só uma revolução bem organizada lhes poderia trazer a libertação.

Dessa maneira, a 1º de dezembro de 1640, um grupo de 40 fidalgos dirigiu-se ao Paço da Ribeira onde estavam a duquesa de Mântua, regente de Portugal, e o seu secretário, Miguel de Vasconcelos. A duquesa foi detida e o secretário assassinado. Foi assim que Portugal recuperou a sua independência, sendo D. João IV, duque de Bragança, aclamado rei, com o cognome de O Restaurador. Sem incorrer em anacronismo, pode-se imaginar que essa monarquia nascia de um consenso entre os líderes representativos da nova nação.

Esse ciclo monárquico durou até 1910, quando D. Manuel foi apeado do poder, dois anos depois de ter assumido a coroa em razão do assassinato a tiros, no Terreiro do Paço, do rei D. Carlos e seu herdeiro. A república que nasceu do golpe não teve condições de manter um governo estável. Em meio a muita instabilidade, Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais (1872-1918), militar e político, assumiu, em dezembro de 1917, a presidência da República, suspendendo e alterando de forma ditatorial normas essenciais da Constituição de 1911, razão pela qual ficou conhecido com o Presidente-Rei. Foi um governo de grande instabilidade que culminou, a 14 de dezembro de 1918, com o assassinato de Sidónio País, em Lisboa, no momento em que partia para o Porto, na estação do Rossio.

II

Tipo messiânico e caricato, mas que não diferia muito dos líderes portugueses - e mesmo europeus - do seu tempo, Sidónio Pais, direitista, não merece mais do que algumas poucas linhas em qualquer livro de história de Portugal. E só tem o seu nome ressuscitado num título de livro hoje porque um poeta da grandeza de Pessoa perdeu seu tempo e talento em reverenciar sua memória.

De qualquer modo, ao manifestar sua admiração por um chefe carismático, Fernando Pessoa estava antenado com as tendências predominantes em seu tempo - as outras tendências estavam à esquerda: anarquismo e comunismo. Por isso, não se pode imaginá-lo um democrata. Seria, isso sim, um antidemocrata pagão, como o definiu Ruy Miguel, ao dar esse título à coletânea em que reuniu textos pessoanos sobre política e doutrina estética (Lisboa, Nova Arrancada, 1999), ou, como ele mesmo se autodefiniu em Páginas de Doutrina Estética, "um nacionalista místico, um sebastianista racional".

Foi o que o levou a imaginar Sidónio Pais como um novo Desejado, um D. Sebastião, que viria numa manhã de nevoeiro para libertar Portugal e levá-lo ao seu grande destino. É de lembrar que Sidónio Pais pertencia a um grupo de direita que, em fins de 1917, opunha-se à participação de Portugal na I Grande Guerra. Um decreto ditatorial modificou a forma de eleição do chefe do Estado e Sidónio Pais foi eleito presidente da República pelo sufrágio universal e direto, o que constituiu a primeira experiência presidencialista em Portugal, que, no fim das contas, durou pouco. Seu assassinato causaria uma comoção semelhante à que se daria no Brasil em 1954, com o suicídio do presidente e ex-ditador Getúlio Vargas. Como se sabe, a morte repentina e em condições trágicas sempre contribui para a "canonização" da vítima.

Alma sensível, Fernando Pessoa, aparentemente, fez essa defesa de um governo forte baseado na opinião pública levado por essa comoção popular que sentia ao andar pelas ruas da Baixa e do Bairro Alto em Lisboa. Mas não se pode dizer com todas as letras que tenha sido fascista. O que defendia era uma monarquia ideal baseada na opinião pública que, para ele, aliás, não passava de uma "superstição verbal". Por isso, imaginou que Sidónio Pais poderia ter sido esse rei escolhido pelo voto popular.

(...) E, porque foste, confiando
Em QUEM SERÁ porque tu foste,
Ergamos a alma, e com o infando
Sorrindo arroste,
Até que Deus o laço solte
Que prende à terra a asa que somos
E a curva novamente volte
Ao que já fomos,
E no ar de bruma que estremece
(Clarim longínquo matinal!)
O DESEJADO enfim regresse
A Portugal!

Para se entender este poema, o ideal é que o leitor tenha à mão também os textos de Páginas de Doutrina Estética, que vieram à luz em 1947, e de O Interregno - Doutrina e Justificação da Ditadura Militar em Portugal. Talvez possa concluir que o poeta como pensador político tenha sido contraditório ou ingênuo. Mas, antes de chegar a essa conclusão, deve levar em conta que não é a forma que define um bom governo, mas o seu caráter. Uma república com parlamento aberto pode ser tão opressora, despótica e corrupta quanto uma monarquia absolutista como aquelas que ainda hoje existem no Oriente Médio. Exemplos não faltam.

III

Brunello De Cusatis é professor associado e responsável pela cátedra de Literatura Portuguesa e Brasileira e de Língua Portuguesa e Brasileira da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade Perúgia, Itália. Além de publicar numerosos artigos em jornais e revistas especializadas, preparou a tradução para o italiano de várias antologias de escritores lusófonos, como os angolanos José Eduardo Agualusa e João Melo, o português Mário Claúdio e os brasileiros José Clemente Pozenato e Sérgio Faraco, todos publicados por Morlacchi Editore, de Perúgia.

Em relação a Fernando Pessoa, organizou o volume Scritti di Sociologia e Teoria Política (Roma, Settimo Sigillo, 1994), Politica e Profezia. Appunti e Frammenti 1910-1935 (Roma, Antonio Pellicani, 1996) e Economia & Comercio. Impresa, monopolio, libertà (Roma, Ideazione, 2000).


De Cusatis é ainda autor da monografia O Portugal de Seiscentos na "Viagem de Pádua a Lisboa", de Domenico Laffi. Estudo Crítico (Lisboa, Editorial Presença, 1998), Tra Italia e Portogallo. Studdi storico-culturali e letterari (Roma, Antonio Pellicani, 1999), e Esoterismo, Mitogenia e Realismo Político em Fernando Pessoa (Porto, Edições Caixotim, 2005).





FERNANDO PESSOA: ALLA MEMORIA DEL PRESIDENTE-RE SIDÓNIO PAIS, com tradução e ensaio-introdução de Brunello De Cusatis. Perúgia, Itália: Edizioni dell´Urogallo, 56 págs., 11 euros. Site: www.urogallo.eu

Teste, poema de Nicanor Parra



O que é um antipoeta:
Um comerciante de urnas e ataúdes?
Um sacerdote que não crê em nada?
Um general que duvida de si mesmo?
Um vagabundo que ri de tudo
Até da velhice e da morte?
Um interlocutor de mau caráter?
Um bailarino a beira do abismo?
Um narciso que ama todo o mundo?
Um brincalhão sangrento
Deliberadamente miserável?
Um poeta que dorme em uma cadeira?
Um alquimista dos tempos modernos?
Um revolucionário de bolso?
Um pequeno burguês?
Um charlatão?
………………. um deus?
………………………… um inocente?
Um aldeão de Santiago do Chile?
Sublinhe a frase que considere correta.
O que é a antipoesia:
Um temporal em uma xícara de chá?
Uma mancha de neve em uma rocha?
Um açafate cheio de excrementos humanos
Como crê o padre Salvatierra²?
Um espelho que diz a verdade?
Um bofetão no rosto
Do Presidente da Sociedade de Escritores?
(Deus o tenha em seu santo reino)
Uma advertência aos poetas jovens?
Um ataúde a jato?
Um ataúde a força centrífuga?
Um ataúde a gás de parafina?
Uma capela ardente sem defunto?
Marque com uma cruz
A definição que considere correta.




Tadução: Jefferson Vasques

(imagem retirada da internet: rodney smith)

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Médico, diplomata e escritor, Fabio de Sousa Coutinho


 


 
Na janela
do palácio arruinado,
rosto.
- Drago Stambuk


        Para os leitores familiarizados com as biografias de nossos grandes escritores, o título deste artigo remete, automaticamente, ao colossal João Guimarães Rosa. Nascido em Cordisburgo, o autor de Corpo de Baile de lá saiu para cursar Medicina em Belo Horizonte; depois de formado, tornou-se médico da Força Pública de Minas Gerais, e, vitorioso em concurso direto, ingressou no Itamarati, em 1934.
        Em paralelo às carreiras médica e diplomática, Rosa já desenvolvia a de escritor: em 1936, aos 28 anos, ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras com o volume de poesias Magma, até hoje inédito. No ano seguinte, escreve os contos de Sagarana e obtém segundo lugar no prêmio Humberto de Campos, da Livraria José Olympio. A partir daí, uma trajetória de consagração literária, culminando com a publicação, em maio de 1956, do extraordinário, inigualável Grande Sertão: Veredas.
         Muito longe de nossas plagas, na milenar e fascinante Croácia, um médico de formação e diplomata de carreira veio, por igual, a despontar nas letras, mais especificamente como um dos principais poetas de seu país. Refiro-me a Drago Stambuk, cujo livro Céu no Poço foi lançado, no ano passado, em caprichada edição bilíngue, pela editora da PUC do Rio Grande do Sul. Desde 2011, Drago é o Embaixador de sua terra no Brasil (simultaneamente ao exercício das mesmas funções na Colômbia e na Venezuela).
Prefaciada pelo crítico e professor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, Céu no Poço é obra que contempla, entre outros temas, o forte impacto que a cultura e os costumes brasileiros causaram no diplomata e poeta que aqui aportara em missão oficial.
Com efeito, no virtuoso poema intitulado Rio de Janeiro, o vate croata evidencia a solidez de sua maturidade artística, proclamando, em arguta observação:

Crescimento ou decadência,
canto ou grito. 
Umidade ou dispneia,
melancolia ou preguiça.
Fermentação mineral
parada no esforço da podridão.

Coberta verde carnuda para as batalhas concluídas
e paisagens torturadas.

Cidades são tuas, terra do Cruzeiro do Sul,
como uma planta que sobrevive e cresce,

apesar de tudo, nos deslizamentos da terra íngrime;
com o regar – mas também sem ele.

 

Mestre do haikai, o Autor dedica parte significativa de seu livro brasileiro à clássica forma do terceto, elevada à sua mais conhecida potência pelo nipônico Matsuo Bashô (1644-1694). Como apontado com precisão cirúrgica por Assis Brasil, no elegante prefácio, o poema em três linhas de Stambuk é, porém, autônomo em relação a modelos, oferecendo, invariavelmente, um segundo verso de natureza substancial, a exemplo do que ocorre no precioso

Nascido em 20 de setembro.
Poeta,
no tempo da colheita.

Ou no premonitório

Quando os mesquinhos
partirem,
os completos chegarão.

E, também, filosoficamente,

Segundo a imagem de Deus
foi criado. Ovo fresco,
sujo de excremento.

Médico, diplomata e poeta, a presença, entre nós, de Drago Stambuk, inda que temporária, constitui privilégio intelectual a ser usufruído ao extremo, louvando-se, com estrépito, a iniciativa da ediPUCRS de editar, em tradução da língua croata, o arrebatador Céu no Poço.

Morte de um sonho, Pedro Salinas




Começam sempre os sonhos a morrer
pelos pés que não querem já levá-los.
E como o céu de um sonho está em seus olhos
o último que se apaga é seu olhar.
E foi por ti que eu vi o que nunca vira:
o cadáver de um sonho.
Dia a dia eu o vejo, aqui em meu rosto, ao levantar-me.
(Voltaste o teu olhar para outro rosto).
Eu sinto-o em minhas mãos,
enormes fossas cheias de sua falta.
Ali ele jaz: meu peito é sua tumba.
Ressoa-me nos passos
que vão, como vivendo, até a minha morte.
Eu sei o segredo último:
o cadáver de um sonho é carne viva,
É um homem de pé, que teve um sonho,
e alguém matou-o. E que finge viver.
Porém, antes de ser seu próprio morto,
já é, agora, o cadáver de um sonho.
Por ti possa eu saber como vivendo
se ressuscita, ainda, entre os mortos.
 
 
PEDRO SALINAS, últimas estrofes de “Morte do Sonho”.
Tradução de José Jerônimo Rivera.

 

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

ÅKE LANGE1909-1975Ingrid Bergman, 1935Gelatin silver print, 27 x 21, 5 cm. Vintage.
Stockholms Auktionsverk
AKE LANGEL-1975-INGRID BERGMAN, 1935. STOCKHOLMES AUKTIONSVERK

Onde está teu rosto,
exposto à máquina do tempo,
ao espelho da fotografia
que rompe e nega a carne
e tudo transforma em sonho
de película – a película fina
da vida que se desfaz
quando se desvia o olhar?


(inédito, 13.12.2011)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Soneto XXVI, Cláudio Manuel da Costa




Não vês, Nise, este vento desabrido,
Que arranca os duros troncos? Não vês esta,
Que vem cobrindo o céu, sombra funesta,
Entre o horror de um relâmpago incendido?

Não vês a cada instante o ar partido
Dessas linhas de fogo? Tudo cresta,
Tudo consome, tudo arrasa, e infesta,
O raio a cada instante despedido.

Ah! não temas o estrago, que ameaça
A tormenta fatal; que o Céu destina
Vejas mais feia, mais cruel desgraça:

Rasga o meu peito, já que és tão ferina;
Verás a tempestade, que em mim passa;
Conhecerás então, o que é ruína.

imagem retirada da internet: fotolog, casa de claudio manuel da costa, ouro preto