quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Danação, poema RCF


Na sala de jantar da infância,
havia uma parede de tijolos de vidro.
Como – perguntava o menino –
se pode edificar sobre o que nos fere?
Depois, no útero da rede
tarde e túmulo
o caderno egípcio de caligrafia
sob o peito dormido
silêncio túrgido.

À noite, o castigo escuro do quarto
– a vida inteira pergunta qual o erro –
na bolsa de paredes infindas da memória
que não se enche nem esvazia
o pássaro do remorso que bica insistente.

Estou cansado de pisar na minha sombra.
Oh, tanto que pareço ser dela reflexo,
não ela de mim.

O que visto tem costura
de fio sem meada.
Planto um pé de imobilidade no jardim.
Amanhã colherei os frutos da solidão
que já estão mortos ao nascer.
Por isso preciso de jardineiro.
É difícil podar as plantas aquáticas,
pois essas só sobrevivem
na água amniótica da rotina.

(A máquina das mãos, 2009)

imagem retirada da internet: amarras

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

A ira, poema RCF




é quando o palheiro
cabe na agulha

é quando não apenas
a camisa é de força

mas de força
           são
                a calça
                os sapatos
               ( de chumbo
               ou cimento )
o terno
              inclusive o corpo
              crispado
              imóvel
              inerme
              no suor dos erros
a violência
nômade
do ciclone
furioso
em seu caminho
de si mesmo
arma de grosso
caribe,
levando
por onde passa
              cancelas
              pára-raios
              e a exatidão
              das palmeiras

intestina
rodopiando
nas tripas do desatino
ou circula
rubicunda
              na montanha-russa
              das veias

forno que se incinera
– combustão espontânea –
                            sem precisar de diesel
                            lenha ou razão


(do livro Andarilho, 7Letras, Rio de Janeiro, 2000)


imagem retirada da internet: anacamaarra


segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Mar traçado a régua, poema RCF






Aqui só existe o mar
e o horizonte traçado a régua.
Sou apenas um homem
em pé na areia dos anos,
com os pés espumando.
O dia se impõe, morno,
e penso no tempo,
onda contínua,
nela entramos como quem pega jacaré,
até a onda nos largar exauridos
e continuar sua reta até uma praia
a que nunca chegará.




(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)



(foto:vivan maier)


sábado, 22 de dezembro de 2018

Um homem é muito pouco 36




Resultado de imagem para vivian maier



Os amigos poetas de Alice leram poemas num restaurante em Botafogo. Os poemas de Alice eram poemas bravios, mas ela os dizia de forma vaporosa. Percebi que andávamos devolutos. Minha vida estava devoluta, minha relação com Alice estava devoluta, meu destino era destino devoluto. Não era a maneira de dizer poesia comum em Alice. Aquela que estava ali não era aquela que escrevera os poemas. Eu me perguntava onde estava a mulher que escrevera os poemas. O restaurante tinha pátio interno que servia mais de bar que de restaurante. Era daí que os poetas, num palco minúsculo, diziam as poesias.

Um deles falou das flechas que lançamos desde que acordamos e não alcançam os alvos. Eram poemas raivosos. Eram poemas roucos como quem esgotou a fala no grito. E agora só restava o urro. Estávamos todos insulares ali. Eu havia perdido intensidade.  Alice não era mais vibrante porque acirrada, Alice era a mais vibrante porque a poesia dela era abrasiva.

O outro que lia poemas falava de dias curtos e noites alongadas, que cada dia que passava a noite tomava o dia. Eles tinham em comum algo de Álvaro de Campos, que afinal é o Walt Whitman português. Não era à toa que os três se reuniram ali no bar. Falavam das mesmas coisas, quase no mesmo tom, embora a leitura dos amigos poetas de Alice fosse leitura exaltada.

Havia poucas pessoas jantando, o bar estava cheio. Percebi que um sujeito se acercava. Temi que tivessem por fim juntado alvo e dardo. O dardo era um sujeito que não via há muito tempo. Era Ernesto, um amigo dos tempos de ginásio. Agora era médico, recém-formado.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Tíquete para o futuro, poema RCF









Abandonado tem quase sempre
uma dona no meio da vida móbile.
Aqui não há erro neste desterro.
Busco o certo em todo desconcerto.
Em extensos estão os tensos
– que podem estender o que é curto
transformar pontada em dor crônica
que também é longa como a palavra prolongamento.
Às vezes moro no desmoronamento
e fica difícil habitar o instável.
Viver é curioso: tem dois veres:
um vi passado e um ver contínuo
entre um e outro a vida
escorre como fio de chocolate quente
que de repente pinga e cessa no ar.
A vida – na vida só há ida,
não há retorno no que me torno.




(Memória dos Porcos, 7Letras, 2012)

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Águas do remorso, poema RCF







E o homem ali, encharcado,
franzido de tanta imersão:
são as águas que não lavam,
dissolvem, limpam ou apagam.
São águas que criam
o limo das lembranças,
a água estagnada de remorso,
a cada dia mais turva,
até secar o homem
de tanta umidade dos anos
e que não deixam cimentar
o muro do esquecimento.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2014)


segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Jogo do bicho, poema RCF




Vale o que está escrito:
deu gato na cabeça,
o pensamento é só gambiarra,
seu jogo de amor
é um bicho que não premia.
O coração dançou.
O mundo vai para um lado,
seu coração para outro.
Está cansado da arritmia
da vida que tem apenas um ritmo:
o baticum do bumbo
no mundo que se fez surdo,
não ouve o reco-reco das suas taquicardias.




(do livro Memória dos porcos.  Rio, 7Letras, 2012)






domingo, 16 de dezembro de 2018

Poema para o esquecimento, RCF




Se tu vês esta porta
é porque teus olhos têm memória.
Se tu não tens a chave
é porque tua memória não tem olhos.

Tudo é um imenso galpão vazio,
não há cômodo ou parede.
Estás imerso no coma
que é um rio sem margens.

Lagoa de sombras
deliquescendo o que já é desfeito,
pescadores de plumas,
incêndios que não queimam,
a maturidade que perdeu seu gume.

Este que não se aloja
em nenhum lugar do cérebro,
máquina de vapor,
está em todo corpo adormecido:
não há memória de outros corpos.

Este que é a permanência
do quarto escuro da infância
não entende porque o parafuso
não se fixa na treva.

É como velar um morto
e não se ver o corpo.

É como brincadeira de esconder,
quem nos procura não quer mais brincar,
ficamos no esconderijo escuro da mente,
não há quem nos venha buscar.

(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)

imagem retirada da internet: recorte de autoretrato de Lucian Freud

Pardo, poema RCF




Essa gente parda, miúda,
mais parda ainda na alma,
mistura-se com o gasto
da cidade: paredes, fumaça,
fuligem, zinco, asfalto,
e a tristeza que também é parda.

Eu, que sou pardo,
também sou de escrita
apenas sugestão
como sonho ou fracasso
que são coisas
que poderiam ter sido.

A derrota sempre é parda
porque se pensa que passa
por ela impune: coisas pardas
permanecem mais
que emoções vermelhas.

Pardo é meu dia,
pardas são minhas dores alheias
já que, além das minhas,
sofro pela descrença parda
do homem pardo da esquina.

imagem retirada da internet: lucien freud

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Poema a Lezama Lima, RCF




Esta é a estranha noite de sons gris
que vêm burlar meu sono
como algaravia de festa rumbeira de vizinho.

Um poeta habanero, asmático, de voz grave mas faltosa,
sussurra poemas e nos irmana num tempo alçado à medição zero.

Lezama me diz, sentado em sua cadeira de palhinha,
na varanda da casa, abanando-se com um albanico de paja
que posso habitar espaços tortuosos de ventos frígios
existir sem existir
na presença prístina no casulo exuberante e feroz das palavras
que zunem e produzem o fel do poema.

A noite com seus cachos morenos
olhos trigueiros de quem não teme a luz
nem os versos pardos que se movem nas sombras.

Estreitas são as mãos que me acercam
– afinidades eletivas – a poetas que nunca conhecerei
e que a morte fez supérflua
pois os alcanço como alcança o menino
que pula para apanhar a manga lápis-lazúli
na mangueira nervura de estrofes.



(do livro Andarilho, 2000)

imagem retirada da internet: lezama lima

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

As casas, poema RCF




As casas do campo
moram longe uma da outra,
são baixas, mirradas,
descoloridas,
mal se põem em pé
– as casas se parecem
com seu dono.

O camponês
tem alma de palha
como a cama
e, bambo como uma mesa rústica,
o corpo do camponês
necessita um calço na perna.

As casas vistas do alto
– do alto, as plantações são certinhas
como cabelos cortados –
mostram-se aqui e ali
sempre com o olho piscando
da janela quebrada.
As casas dos camponeses
mais expõem que escondem
mais cansam que repousam
mais doem que alegram
a casa camponesa
é feita de farinha e rapadura
por isso é que na época das cheias,
as casas, subnutridas,
se dissolvem nas águas.
Na prancheta dos arquitetos anônimos
das casas camponesas
só existe o risco da morte.

As casas por fim anoitecem na lamparina
de chama pequena.
É um pouco da alma camponesa
que queima no pavio
empapado
de querosene
                  e vazio.





imagem internet tarsila do amaral

domingo, 9 de dezembro de 2018

O viúvo, 3º capítulo




A primeira elefantíase que vi foi na Quinta da Boa Vista. Nunca mais me esqueci das pernas gigantescas, as pernas pareciam ter nascido antes das pessoas. As mulheres iriam parir pernas. E das pernas viriam o resto do corpo. Nove meses para parir uma perna. Uma perna enorme, ressalte-se. Mas uma perna. E, como de um tronco, nascem os ramos, tudo o mais era secundário e derivativo. O homem é um ser derivado das pernas. Uma imagem infantil é tão forte que a realidade passa a ser o quarto escuro da infância que se carrega a vida inteira.
Meu quartescuro tem medos trancados, pernas troncos de árvore, lídias mortas que reclamam que as deixei no limbo do esquecimento, a ausência de rostos paternos, um abastardamento da memória.
As pernas de elefante não me respondem. Não são independentes, mas não me ouvem. Elas se guiam sozinhas e têm pensamentos mórbidos. Uma perna distorcida é capaz de distorcer toda a realidade. De inchar a realidade. De fazer o que se vê e pega uma coisa intumescida.
Elas não crêem na realidade e por isso saem por aí de vez em quando e passeiam solitárias, vadias, independentes e gordas.
Não gosto quando me levam a lugares sórdidos. Há elefantíase às vezes no que penso. Então o pensamento se torna inchado. Dolorido, avermelhado, o pensamento lateja, a gente aperta o pensamento e, inchado, fica a marca do dedo no pensamento.
Fico estirado na cama. Minha cama tem vida própria. Respira, sua, transpira, goza, dorme ou se incomoda. Quando a preguiça a toma, toda ela se esparrama e mira o teto com o tédio dos suicidas. Mas minha cama não tem vocação para a morte.
Há cumplicidade perigosa entre minhas pernas gordas, independentes, com a minha cama que trama e se arrisca além do sonho. Minha cama também sofre de elefantíase – enorme, paquidérmica, pele áspera, ingressa nas imaginações noturnas e nos suores ansiosos.


(imagem internet: botero)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Hipótese de tudo o mais, poema RCF


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Na escuridão, tudo vira hipótese.
E não há inferno pior que uma hipótese.
Um fogo brando, lento, escuro, corrosivo.
Não sei o tamanho da hipótese,
nem quando começa, nem quando termina.
O homem deveria ser senhor de suas hipóteses.
Não posso viver num mundo
em que tudo se transforma em hipótese.

(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)



quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Samuel Rawet, poema RCF




A angústia judia e imigrante de Rawet,
que vivia apenas em seu gueto de Sobradinho.
Rawet morreu lendo, em sua cadeira de balanço,
e lá ficou três putrefatos dias.
O gueto de Rawet era sua cadeira de balanço,
o menor gueto do mundo.



(do livro A máquina das mãos, 2009)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Labirinto, poema RCF



O médico sentencia:
problema de labirinto.
Mal sabe o médico
que meu labirinto ciência alguma alcança,
nem lente, instrumento de precisão
– principalmente instrumento de precisão –,
não chegam a encontrá-lo.
Embora tonto, sei que não perdi
nem o labirinto nem a razão
e que estou – como sempre estive –
nele antes que ele em mim.
Melhor seria o médico tirar-me
o labirinto, mas essa ciência
ele não domina, desconhece,
não é matéria de sua faculdade,
mas faculdade da minha matéria.
E, assim, com o labirinto inflamado
– deve ser mais complexo
um labirinto inflamado
que um labirinto que se esconde –
tateio em vão dentro de mim,
pelas paredes ensurdecidas,
sem rumo, tontas, becos sem saída,
corredores tortuosos, chão mole,
e doce tormento de trazer um segredo
– o labirinto em meus ouvidos –
que nem a medicina estuda
nem a ciência cataloga.


(do livro Memória dos porcos.  Rio: 7Letras, 2012)







terça-feira, 4 de dezembro de 2018

O caranguejo, O difícil exercício das cinzas



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A cidade não é uma estrela jogada no deserto,
e, sim, um caranguejo imóvel,
com inúteis garras que se ficam na areia.
A cidade murmureja a vontade quente,
há no mormaço a esquivança dos desejos,
move-se a máquina pouco mercante,
a máquina sem barra e lenta,
aqui não entram navios, embora tenhamos
porto e amarras – o porto é singular,
está em cada porta migrante.
A cidade se recompõe a cada manhã,
mulher sem desjejum, rosto dormido
de pesadelos, cabelos
em desalinho de uma névoa estrangeira.

Ó rotas, ó fugas, todas as saídas são entradas
e não há porta ou círculo que se feche,
a imensidão de árvores deformadas
pela sede voraz das megalópoles
à beira-mar, à beira-vida,
a vida em córrego da infância,
porque cada um traz seu rio da infância
dentro de si, mesmo que nunca tenha
se banhado em rio, mesmo que sua infância
seja negada e seca.

A cidade não se contorce, circense,
no picadeiro dos grandes espetáculos,
é ainda uma província de poderes,
embora seus poderes não sejam provincianos,
o Planalto é um risco de vidro
que insiste em sua pose de guarda britânico.
As esculturas é que me encantam:
Esta é a nossa Pompeia particular
e cada escultura é um candango
petrificado pela larva
da construção desta Atenas armada de cimento.

Os viadutos, que são pontes para o mesmo lugar,
gostam do regime russo da montanha,
e não se esgotam em levantar-se e baixar-se
no exercício de asfalto, geometria e urbanismo,
três poderes sem praça de exercidos
para diminuir o homem e sua estatura de carro.

Ah, Brasília, ao mesmo tempo veneza e andes,
com tuas três pontes sobre a placenta de água doce,
paralisada e muda como um espanto de amantes.
A do Gilberto Salomão é apenas uma ponte vecchia,
plana e regular, como uma rua:
a Costa e Silva é graça e garça, voo flagrado,
asa cortada de pássaro e em mármore branco fixada;
por fim a terceira do Sul, a que um dia se pensou
em chamar de a do Mosteiro,
cobra gigantesca, suspensa por si mesma,
zepellin de ferro, contorcionismo de estruturas,
me liga à vida urbana,
traga-me ordinariamente
quando me sinto atravessando
dois tempos: a vida doméstica
e a vida urbana, dois extremos
que não se ligam,
quanto mais cruzo mais me afasto
os dois polos.
Ó vida futura, que ponte me levará
a  teu útero virtual?

(O difícil exercício das cinzas. 2014)

domingo, 2 de dezembro de 2018

A poesia de Ronaldo por Eudson e José Neres

RONALDO COSTA FERNANDES, POETA DE IMAGENS


by Igor Marques

Eudson Sousa Menezes
Pesquisador, graduado em História e graduando em Letras
José Neres
Coordenador do projeto O Sistema Literário Maranhense: Hipermídia e Hipertextos






A literatura maranhense vive em constante processo de renovação. Novos poetas, contistas, romancistas e dramaturgos buscam, apesar dos entraves do mercado editorial, manter a tradição do Maranhão como celeiro de grandes homens (e mulheres) de letras. Nessa vereda que procura manter essa tradição, o nome de Ronaldo Costa Fernandes merece destaque no campo da poética maranhense.
Ronaldo Costa Fernandes nasceu em São Luís do Maranhão a 29 de agosto de 1952. Graduou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde concluiu também o mestrado em Literatura Hispano–Americana. Doutorou-se pela UnB com a apresentação da tese A ideologia do personagem brasileiro, que foi publicada em livro pela Editora da UnB em 2007. Residiu por nove anos em Caracas, na Venezuela, onde dirigiu o Centro de Estudos Brasileiro da Embaixada do Brasil. Foi também Coordenador da Funarte de Brasília de 1995 a 2003.
A produção literária de desse escritor transita entre romance, conto, poesia e ensaio. Seus dois primeiros romances são “João Rama” de 1979 e “Retratos falados” de 1984. Em 1998, com o romance “O Morto Solidário”, que foi traduzido e publicado para o espanhol, recebeu o Prêmio Casa de Las Américas. Em 1997, lançou o romance ”Concerto para flauta e martelo”, que foi finalista do Prêmio Jabuti de 1998. E em 2005 publicou o romance “O viúvo” e, em 2010, trouxe à tona “Um homem é muito pouco”, seu mais recente romance.. No campo do ensaio, publicou, em 1996, O “Narrador do Romance”, laureado como Prêmio Austregésilo de Athayde, da UBE-RJ. Como poeta publicou “Estrangeiro” de 1997, “Terratreme” de 1998, “Andarilho” de 2000, “Eterno Passageiro”, de 2004 e “A Máquina das Mãos”, de 2009, livro com o qual recebeu o prêmio de Poesia da Academia de Letras em 2010. Como contista, publicou “Manual de Tortura”, 2007.
Mesmo sendo um estudioso de elevada cultura, o escritor não deixa de ser também um “refém” da imaginação. Em seu poema “Imaginações Violadas”, toda tensão entre o racional e o irracional é fermentada pela imaginação. É necessário então externar essa tensão por meio do “pão poético”. Dessa maneira, poeta funde, em seus versos, ateísmo e religiosidade. Crer na não existência de deus, não é um princípio de religiosidade? Para o eu-lírico há, sim, esse princípio. A imaginação, o “padeiro”, a cada manhã fermenta no poeta essa pulsão entre negar e aceitar a imanência do divino. Então diante da manhã, a filosofia se esvai em migalhas, pois a filosofia não consegue explicar essa tensão entre o racional e o transcendente. Portanto, toda imaginação se tornar um ato transcendente. É isso que intriga o poeta: como as suas “imaginações são violadas” pelo transcendental?
O poeta maranhense Ronaldo Costa Fernandes representa, por meio de seus versos, a tensão maior da pós-modernidade: a descrença nos valores morais. A crítica poética não é apenas sobre a religiosidade, mas é também contra as ideologias totalizantes. No poema Potemkim-Kursk, o eu lírico põe em xeque a eficiência dos modelos sociais baseados na doutrinação ideológica. Não é apenas o socialismo que é posto em descrédito, mas todas as ideologias que pretendam uniformizar as relações humanas, tirando-lhes a vitalidade das mesmas.
O poeta também analisa os sentimentos do eu lírico ante o mundo pós-moderno. A pós-modernidade que tudo relativiza é o lugar de pulsão entre a moral que tudo permite e a religiosidade que põe restrições a ação. É, portanto, através da poesia que o poeta consegue da “forma ao informe”. A poesia, consequentemente, torna-se a catarse do eu lírico a esse estado de tensão entre o racional e o íntimo.
A poesia de Ronaldo Costa Fernandes demonstra claramente que é possível fazer versos que unam plasticidade textual, jogos imagéticos e extrema incursão pela logopeia, ressaltando o dito e suscitando o não-dito. É uma poesia a ser consumida sem pressa, com olhos atentos nos detalhes e nas armadilhas poéticas que espreitam o leitor a cada virar de página.


Publicado em O Estado do Maranhão, 15.06.2011

Poema sobre cheiro, poema RCF




Teu cheiro holográfico
põe corpo onde não estás
e faz que apareças
de cheiro inteiro
no ar que respiro.
Esse cheiro de jasmim
que jaz em ti
é o cheiro de fêmea
enjaulada em teu vestido,
domada pelo tecido
apertado da tua pele em flor
no baile de máscaras
dos nossos encontros eletrônicos.
Se persiste o cheiro
é porque não cheira mais
nas narinas, entra pela memória
e lá exala o perfume do verbo
que te floresce a cada palavra.
Tens o cheiro primevo
da fêmea inaugural,
tens o cheiro, sim, de fruta
que os poetas já cantaram,
tanta que se come lambuzado.
Tens o cheiro dos sete pecados capitais.
Tens o cheiro do vício
que é o cheiro do quero mais.


(foto:vivian maier)

sábado, 1 de dezembro de 2018

Luz em agosto, Faulkner


        



(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2016)


                Ardiloso, escritor de inúmeros recursos, Faulkner neste romance, ao contrário dos vanguardistas O som e a fúria e Enquanto agonizo, mostra um narrador mais comportado, usual e tradicional. Todas as partes do romance são narradas em 3ª pessoa. Não há monólogo interior. O monólogo interior até pode ser realizado em 3ª pessoa. Mas não é o caso aqui. O que existe aqui é alternância do foco narrativo.

                Esse discurso tradicional não é desprovido de sua idiossincrasia e Faulkner que aparentemente sugere que vai contar uma história de modo tradicional, ao colocar o foco narrativo em Lena Grove, moça grávida que vai atrás do pai do filho que irá nascer, no Alabama do início do século XX, logo no segundo capítulo aponta para a mudança de foco, acompanhando os vários personagens, sem, contudo, com a ruptura e fragmentação que torna a leitura de Enquanto agonizo, por exemplo, difícil e confusa, pois o leitor terá que identificar quem está falando entre quase dezena de personagens.

                Luz em agosto mostra que Faulkner, mais uma vez, é um grande narrador. Nem todos os escritores têm força narrativa. Joyce mesmo não era um grande narrador. Culto, excêntrico, experimentalista, a prosa de Joyce é intrigante pelo jogo de palavras, a intertextualidade, numa exposição morosa e cerebral das vinte e quatro horas de Leopold Bloom. Mas Joyce é um fraco contador de histórias. (Deixemos Joyce de lado, porque nos interessa aqui Faulkner). Em Faulkner, influenciado por Joyce, não há, principalmente, a palavra porte-manteau que caracterizou, junto com o stream of consciousness, a prosa joycena. O romance de Faulkner mais devedor de sua admiração pelo irlandês é O som e a fúria.

                Outro dado curioso que quero comentar nessa pequena nota sobre Faulkner é o conceito de negro. Há vários negros verdadeiros na narrativa de Faulkner. Cativa-me sobremaneira o fugitivo negro de uma penitenciária em Palmeiras Selvagens que toma toda uma metade do livro que não tem nenhuma ligação com a outra metade onde são narradas as desventuras de um jovem médico e sua esposa numa afastada e derruída mina cujos patrões mantêm a todos numa insalubridade doentia.

                Em Luz em agosto, o personagem principal, aquele em que é o eixo que faz girar todos os personagens em sua volta, é Joe Christmas, um homem que trabalha numa madeireira, pai do filho de Lena Grove. Christimas assassina sua amante e senhoria branca, foge, é perseguido e morto. O negro de Faulkner é branco. É assim com Christmas, abandonado num orfanato e seguindo pela vida solitário e anônimo, é assim com Bon, o personagem “negro” e por isso proibido de casar com uma branca por ser incestuoso e, fundamental, por ter em seu sangue um oitavo de sangue negro no romance Absalão, Absalão. Bon é branco, mesmo na visão do norte-americano de hoje.

                Entre alguns personagens de Faulkner que nos causam estranheza – e o fazem um autor especial também por esta apresentação de um personagem dissonante – está Christmas. Como foi dito acima, Christmas é um órfão que desconhece sua origem racial e é levado a outro reformatório em razão de que a direção suspeita que seja negro e portanto não pode permanecer na instituição para órfãos brancos.

                A psicologia de Christmas é quase nula, embora o autor mostre o assassinato de sua amante e protetora branca por esta apontá-lo como negro e ele próprio julgar que é um crime uma branca promíscua envolver-se com um negro como ele. O resto do tempo, Christmas atua como um autômato. Quase que antecipa o personagem descarnado de psicologia do nouveau-roman francês algumas décadas adiante. Sartre fala em um homem sem Deus, o que me soa estranho, porque os romances de Faulkner, principalmente Absalão, Absalão e Luz em agosto estão plenos de referências bíblicas. A maldição, o fatalismo e a tragédia estão em cada linha desses dois romances que se irmanam. Antes que um Joyce norte-americano, Faulkner é um Shakespeare do Mississipi.

                Sobre taras e fraquezas humanas, Monique Nathan observa que os personagens de Faulkner buscam “se reintegrar seu passado de homem do Sul, libertando-o, primeiro, da fatalidade de que se julga vítima”. Perfeito. E Michel Butor (um dos teóricos do nouveau-roman) aponta: “É o conhecimento da sua própria história, absolutamente necessário para que possam libertar-se da fatalidade do Sul, o que Faulkner fornece a seus compatriotas.” (RCF)


A ferro e fogo, poema RCF


A manhã tem várias roupas:
terno claro do sol
vestido de alcinha das férias
pijama suado do pesadelo
saltos – altos e baixos.
A manhã tem cama,
lençol de neblina,
a enorme movimentação
bacteriana dos homens
em direção ao caldo de cultura do trabalho.
A manhã tem vários cárceres:
a cela dos penitentes,
a cela dos escritórios,
a cela dos automóveis,
a cela dos ônibus.
A manhã tem várias casas:
a de alvenaria de hoje,
a de seda do futuro,
feita com o cimento
de algodão do amanhã.
A manhã tem seu citrino:
o falso topázio do sol na vidraça,
o quartzo dos relógios,
os gramas da esmeralda,
rubi de faróis.
A manhã tem vida e morte:
a morte que é um bem
que não se inventaria
nem muito menos
mortal algum quer descobrir a sua essência.
Minha manhã veste o terno
do pesadelo e minha essência
tem a cor citrina
da falsa idéia de que os mortos descansam.


(do livro A máquina das mãos, 2009)

imagem retirada da internet: guy bourdin