quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Uma descida ao inferno da loucura


 
                                                                                       Adelto Gonçalves (*)

                                                           I

            Se como diz a filosofia popular, de médico e louco todos têm um pouco, a um médico louco não há o que acrescentar. Foi a esse personagem insólito que o médico e neurocientista Edson Amâncio recorreu para empreender a sua terceira incursão no romance com Diário de um Médico Louco (Taubaté, LetraSelvagem, 2012). Com um tanto de autobiográfico – que fica claro quando se sabe que o autor realizou nos anos 80 uma viagem a São Petersburgo e Moscou, ainda à época do comunismo –, este relato é um diálogo que Amâncio faz não com a literatura médica a que teve acesso como profissional da área de Saúde, mas com autores que marcaram a sua vida de ficcionista, especialmente Fiodor Dostoievski (1821-1881), a quem estudou em profundidade, até porque atraído pelas ligações que pode haver entre genialidade e esquizofrenia ou até mesmo com o desequilíbrio mental.

            Não por acaso Amâncio recupera neste livro a São Petersburgo que conheceu – ao tempo, chamada de Leningrado –, com o seu Hermitage, o famoso museu, a Fortaleza de São Pedro e São Paulo – onde Dostoievski permaneceu antes de ser encaminhado para o exílio na Sibéria – e, principalmente, o Museu Literário-Memorial dedicado ao autor russo que fica no mesmo apartamento da rua Kuznechny 5/2, onde ele morou, aberto em novembro de 1971, por ocasião do 150º aniversário do nascimento do escritor.

                                                        II

            O relato começa com um clichê da literatura. No caso, é um médico escritor que nada tem de louco que tem acesso a um texto de outrem, que seria outro médico às voltas com distúrbios mentais, um tal Dr.B*. Pelo que se lê da apresentação escrita por esse médico sensato, o tal Dr. B* seria um médico um tanto inconsequente, dado a prazeres etílicos, gastão, acossado por credores e capaz de tomar atitudes tresloucadas.  Por acaso, nos anos 70 e 80, no círculo de médicos contemporâneos do autor na cidade de Santos, havia um médico que pouco fugia desse figurino: um anestesista considerado de mão cheia, mas que, ao final das tardes de domingo, invariavelmente, saía da praia carregado em triunfo, depois de dissipações capazes de fazer corar Baco.

            Resultado de uma mente conturbada, este irregular relato não tem um fio condutor, como reconhece o médico sensato na apresentação, a quem o colega desvairado passou a tarefa de encontrar meios de torná-lo público depois de sua morte. Se não se trata de uma memória de além-túmulo, à semelhança ao Brás Cubas de Machado de Assis (1839-1908), o manuscrito teria sido localizado num baú por familiares do médico tresloucado e traria um apelo do autor ao médico sensato seu amigo para que o publicasse de alguma forma.

            Depois de contar suas primeiras decepções com a medicina, ainda ao tempo de acadêmico na cidade de Santos, o médico relata uma série de acontecimentos insólitos no melhor estilo machadiano em que procura mostrar que os loucos estão na sociedade enquanto os de mente sã estariam nos asilos e manicômios – ou seja, um mundo de sinais invertidos. Em meio ao relato, o médico louco surpreende o leitor com os acontecimentos da viagem que fizera a Rússia, contando em detalhes pequenos incidentes como o hábito que os hotéis moscovitas preservam até hoje de permitir que, de madrugada, vozes femininas langorosas liguem para o quarto do hóspede oferecendo serviços íntimos, esteja o cliente acompanhado ou não da esposa.

            Mais que isso, ler este relato é uma oportunidade de conhecer um pouco de Dostoievski, sobre cuja obra o autor mesmo – não o médico louco – é especialista. Assim, desfilam aos olhos do leitor pormenores do outro museu dedicado a Dostoievski, que fica ao Norte de Moscou, montado na casa onde o romancista passou a sua infância, perto do hospital em que seu pai trabalhava.

                                                           III

            O mundo vivido pelo médico louco de Amâncio é o mundo do pesadelo e do bode expiatório, de cativeiro, dor e confusão, como diria o crítico canadense Northrop Frye (1912-1992). Ou ainda: o mundo do trabalho pervertido ou desolado, de ruínas e de catacumbas, instrumentos de tortura e monumentos à insensatez, que, por sinal, são encontrados no mundo ficcional de Dostoievski. Seja como for, depois da descida ao inferno dostoievskiano, o protagonista do relato retorna à cidade de Santos como a um mundo que morre, tal qual o salmão idoso retorna ao local de sua procriação, para se continuar aqui a citar Frye.

            Como observa o poeta e crítico Ademir Demarchi, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e editor da Revista Babel, autor do texto de apresentação, o livro tenta transmitir uma “verdade”, um relato de algo que existiu, mas que, para o leitor, o tempo todo vai se colocando, de fato, como seguidos falseamentos. “A dúvida, assim, perpassa a leitura, afinal em nada se pode compactuar com o narrador, pois as viagens que relata, uma delas à Rússia de Dostoievski, podem ser totalmente falsas, uma vez que fantasias, delírios de um louco que não saiu do entorno de seu quarto, para mencionar Maistre”, diz.

 

                                                           IV

            Nascido em Sacramento-MG em 1948, Edson Amâncio é médico neurologista estabelecido em Santos  há mais de 30 anos. Graduado, mestre e doutor em Medicina, integra o corpo clínico do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Sua     estréia literária deu-se com os contos de Em pleno delito (1986), vindo a seguir Cruz das almas (1988), romance, Pergunte ao mineiro (1995), crônicas, e Minha cara impune (1997), romance.

            Em 2006, publicou O homem que fazia chover e outras histórias inventadas pela mente, obra que chamou a atenção da crítica e do público por discorrer sobre as ligações ainda obscuras entre distúrbios psíquicos e genialidade. Nesse livro, o autor comenta casos clínicos bizarros de pacientes comuns e de mentes consideradas geniais como John Nash, Mozart, Machado de Assis, Van Gogh, Flaubert, Virgínia Wolf e Bill Gates.

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DIÁRIO DE UM MÉDICO LOUCO, de Edson Amâncio. Taubaté: Editora LetraSelvagem, 152 págs., 2012, R$ 30,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: letraselvagem.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br