sexta-feira, 1 de março de 2024

Almoxarifado das almas, poema

 


 

 

Guido Viaro

 

 

O poeta é um almoxarife

que vai pegar nas prateleiras

de vozes

as resmas do presente,

os acumulados do tempo

e as dúzias de sentimento

para escrever

os versos na tinta dolorida

das ideias ainda em forma

de caixas atrás de uma porta invisível.

 

Depois virá a manhã,

que é outro almoxarifado

de vertigens,

onde estão armazenadas

as caixas de pandora

que são a vida de cada um.

 

E virá a noite

que mantém as luzes das perdas

acesas no quarto vazio

em que se transformou o coração vadio

e faz da imaginação

um almoxarifado

de rostos desfeitos

pela bruma do remorso

ou pela miséria da razão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O acre negócio de viver, poema

 


 

 

 


 

 

Este ano melhorei minha safra;

em outros, me avinagrei.

Então vem o malefício da dúvida

e daninha a semeadura.

Ando por aí fora de época,

no acre negócio de viver.

Depois pondero: nada a reclamar.

Me irrigo,

as palavras sem caroço,

ainda me colho.

Cantarolo solo árido

e brotam filhos na colheita.

A cada semana podo minhas unhas

e a cada mês os cabelos.

Sempre estou de muda.

 

 

 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Vieira na ilha do Maranhão 2










          

        Meu primo alojava-se na parte de trás da casa, num avarandado no quintal. Dormia numa rede, absolutamente nu. Comia lá mesmo, acocorado feito um indígena, numa cumbuca que a empregada lhe levava. – Oh, dona Rafaela, peça a dom João que me livre dessa tarefa. – A que te referes, mocinha? – A levar comida para o senhor vosso primo. – E que mal há nisso? – É que ele deixa suas vergonhas à mostra. – E nunca viste um índio nu? – É que ele não é índio, dona Rafaela. Minha mulher me trouxe a petição da mocinha, entendi logo que não deveria tê-la incumbido de servir meu primo. A falar a verdade, desconhecia que dormia nu, nu se servisse e nu se apresentasse em minha casa, mesmo que fosse no quintal. Ele podia ser índio branco em sua tribo tremembé, mas não em minha casa. Passou a levar a comida o índio cristão José. Não levou duas horas, o primo veio reivindicar a volta da empregada que tão docemente o atendia. Pedi que se vestisse quando estivesse em minha casa, havia de respeitar a pudicícia da família. Um dos homens que se esquivavam das missas era Olegário, um brasileiro filho de português e índia tupinambá. Era dado a conviver com os negrinhos que cuidavam de sua plantação. Frei Virgílio, quando o viu entrar no convento, benzeu-se e quis expulsá-lo. O demônio podia tomar várias formas naquele ermo de mundo e uma delas, talvez a preferida, era a forma humana. 
        Olegário vivia às aforas da cidade, num sítio devastado pelo abuso da terra. Os franceses, os holandeses e agora os portugueses exaltavam a fartura de fruta e ave e a bondade da terra que tudo dava. Ele não via mais que amargura do solo, já gasto de tanto uso da coivara e abuso dos selvagens. O que fora uma floresta frondosa na ilha agora era uma vegetação baixa e apenas cresceram palmeiras que não serviam para nada. Mas Olegário tinha uma artimanha para plantar. Os portugueses ficavam intrigados com a capacidade do colono de inventar uma fertilidade para um solo arenoso, dar vigor ao que era fraco e potência ao que falia. Olegário utilizava os diabinhos negros que lhe serviam em troca de bebida, farinha abundante e outros males, como mais à frente será demonstrado. Os negrinhos, enquanto Olegário dormia, fertilizavam o solo, cuidavam da horta, aravam a terra e jogavam sementes, e as plantações do homem davam-lhe frutos. Ah, se a Inquisição lhe pusesse as mãos! Mas ali na ilha não havia mão divina ou temporal que impedisse um homem de se servir do diabo ou o diabo de se servir de um homem.